É da Sua Natureza

Oi Futuro, Rio de Janeiro (2008)
     

“No verão entre 12h e 15h, vá às Paineiras na Floresta da Tijuca, entre na última queda d’água, no sentido Corcovado-Alto da Boa Vista, estique os braços sobre sua cabeça e coloque as palmas das mãos para cima, contra a ducha, observe o arco-íris que se forma no círculo d’água em volta do seu corpo”.

Marcos Chaves 


É da sua natureza

“O humor abre caminhos”
Marcos Chaves

Marcos Chaves começou a produzir efetivamente na década de oitenta. E, muito embora tenha participado da exposição “Como vai você geração 80?”, sua produção e posição naquele instante não estavam associadas ao movimento internacional de retorno à pintura, ao contrário, conclamavam ações renovadas que refaziam um percurso de Duchamp ao Neoconcretismo. As evocações diretas ao gesto duchampiano demarcavam com clareza a tradição à qual seus trabalhos aludiam. É claro que o ready-made como proposição o interessava, contudo as apropriações de objetos e suas rearticulações promoviam uma experiência diferente e inesperada. Tomar um objeto e reapresentá-lo era exibir um drama profundo com camadas de significação e implicações de ordem cultural e social. Sua postura, assim como a de outros artistas de sua geração pode ser relacionada ao conceitualismo defendido por vários teóricos ao se referirem à produção contemporânea.

É significativa a declaração do artista: “Já tem muita coisa no mundo, prefiro reaproveitar o que está aí”. Isso se aplica ao artista como produtor de objetos e, principalmente, à noção de objeto de arte imantado de conteúdo em si, independente de relações interpessoais com o sujeito. E ainda, se por um lado, os excessos da sociedade de consumo o afligem – e sendo assim sua relação com o que é produzido é decerto uma crítica – por outro, lhe resta o desafio de transformar cada objeto dado em outro ser. E é justamente este “ser-novo” do objeto que instaura sua poética. Desta feita a idéia de ready-made, como elemento deslocado de um contexto e realçado noutro, praticamente desaparece. Seus objetos criam um novo sistema de relações e nos são devolvidos em sua dinâmica trans-significante. É o mundo composto por coisas animadas e inanimadas: mobiliário, adereços, vestuário, linguagem, som, etc. Até o meio utilizado para realizar a obra é um objeto, seja ele o desenho, o vídeo ou a fotografia. O objeto é o meio, e o meio é também um objeto.

O que Marcos Chaves faz é dar consistência às coisas sem destruir sua função original, trazendo a cada uma delas, instâncias vinculadas a ela e que lhe são pertinentes, por exemplo, o artista recolhe um par de sapatos vermelhos, femininos, de salto alto, usado por um travesti, com o qual concebe a forma de coração, e de trompas de falópio, aludindo a camadas sucessivas do universo feminino: do eros, do corpo, da maternidade… Todos os aspectos da feminilidade se dirigem à volição de um ente masculino que almeja o feminino. Trata-se de uma peça que acentua o sentido de “passagens”, e não de extremos, e que é um eixo de ressonâncias. Pois mesmo que a princípio tomado como objeto particular é apresentado em suas implicações coletivas, o objeto, em seu sentido mais estrito, é irrelevante porque estaria particularmente voltado para certa peculiaridade que limitaria sua ampla discussão. Segundo Nicolas Bourriaud, uma das características fundamentais da arte contemporânea dos anos 90, e que considero uma posição visível da produção de hoje: “… a relativa imaterialidade da arte dos anos noventa – sinal de que seus artistas dão prioridade ao tempo mais do que ao espaço e a vontade de reproduzir objetos – não está motivada por um militantismo estético ou por um rechaço maneirista de criar objetos. Os artistas expõem e exploram o processo que conduz até os objetos, até o sentido”. Seus objetos – que surgem a partir de sua função na sociedade – articulam-se dentro de uma malha significante capaz de retroalimentar idéias a partir do modo como os primeiros são inesperadamente rearticulados.

Transformar uma coisa noutra sem mexer na sua estrutura física ou ainda perceber o inusitado produzido por outrem é uma das características que pontuam seu trabalho. Podemos nos perguntar, “como promover as passagens entre uma coisa e outra?”, ou mesmo “como insuflá-la de sentido?”, ou ainda “como fazê-la ser outra sem desaparecer com seu ser original?”. Talvez a questão seja um pouco mais profunda, porque a natureza das coisas em sua função integral é ser apenas para o que foi construída ou para o que convencionalmente existe. O princípio nesta obra é que não exista uma coisa e depois outra: um antes e um depois para o objeto apreendido. O que será devolvido a ele é justamente o universo do qual foi descartado, de modo que se possa perceber esta dinâmica. Ou, mais propriamente, percebê-la como uma situação de passagens: lá e cá lado a lado, simultaneamente – o que decorre da idéia de que coisas aparentemente incongruentes podem se ajustar ou reajustar. No vídeo intitulado Laughing Mask, a aparente disjunção entre tragédia e comédia dá lugar a oscilações do trágico ao cômico, que os coloca, como entidades análogas – na medida em que o riso é tragado pela dor e a mesma dor devolve o riso. A máscara que ri é a mesma que chora, como a nos lembrar que tragédia (dos ditirambos) e comédia (dos cantos fálicos) têm a mesma origem dionisíaca, assim como é dionisíaco o impulso que acelera essa obra. Desta forma, o artista nos ajuda a colocar as coisas lado a lado com passagens instantâneas sem que haja atrito. A comédia e a tragédia para o artista se articulam, nesse ir e vir. Não há um espaço dentro e outro fora, ou um espaço entre, ou ainda situações de tensão entre opostos. Não. O que há de fato são passagens,variações, percursos interconectados. Esse procedimento faz alusão à lógica paraconsistente do filósofo Newton da Costa, que prevê, como ele próprio diz, a solução para “situações e opiniões contraditórias”. Ao rearticular as coisas, o artista promove passagens. E passagens são desafios. Articular é rearticular a realidade. Nesse sentido, participamos das articulações objetuais à medida que nos deparamos com ela.

Marcos Chaves desenvolveu uma série fotográfica chamada Acordos, que mostra o diálogo e a adaptação da natureza com as estruturas de ferro e concreto, tais como cercas, portões, muros etc. Um acordo é uma forma de proceder a fim de tornar possível uma convivência. O que nos apresenta o artista é a possibilidade de estarmos mais à disposição de nossa própria maleabilidade, o que de fato parece ser a disposição natural do corpo. São propostos acordos entre diferenças, na tentativa de estar junto ao outro de modo que possam compartilhar o mesmo território, já que a política parece ter fracassado em sua função de coordenar a vida.

A obra aponta para procedimentos profícuos, autenticamente corretos em detrimento do politicamente correto. Isso se aplica a tudo o que pode ofender ou cercear a liberdade à que o outro tem direito. A série Lugar de sobra – banquinhos construídos pela população com sobras de materiais reciclados – enfatiza que cada indivíduo pode abrir mão do consumo para construir algo criativamente. Isso corresponde à máxima artística “participe” ou “faça você mesmo”, que é uma forma de responder à coletividade e a suas individualidades a partir de nós mesmos. Nada é igual. O todo são diferenças. Essa posição em relação ao sujeito evoca as proposições advindas da experiência brasileira do Neoconcretismo e do Tropicalismo de artistas como Hélio Oiticica, com os Parangolés, de Ligia Clarck com os Objetos relacionais, e Ligia Pape em Roda dos prazeres – com esta última com quem Marcos Chaves estudou. A experiência de compartilhar e interagir que o artista propõe é em parte desdobramento de movimentos artísticos exclusivamente brasileiros.

Talvez o ponto nevrálgico de sua obra seja as relações entre Natureza e Cultura. Mas todo artifício está, em última instância submetido à ordem natural do mundo. Portanto, é preciso discuti-los conjuntamente. O artista se apropria da fita amarelo-preto de sinalização urbana e a aplica nas mais diversas situações da urbe. A fita é levada à sua potência máxima na obra Logradouro na qual a padronização institui um lugar onde a experiência do mundo artificial é levada a cabo como vibração visual e espaço virtual. Entretanto, a palavra “logradouro” guarda em si a palavra “ouro”, como a indicar que tanto há ouro no ato de sinalizar, quanto nesse novo lugar. Não deixa de ser um ruído exacerbado, mas é também harmonização porque em oposição ao logradouro está a série Nós – Floresta da Tijuca – com a ambigüidade dos nós dos cipós e do pronome pessoal (na primeira pessoa do plural) como a nos inserir na paisagem, na natureza em seu estado puro, bruto. Apesar das obras Logradouro e Nós parecerem incongruentes, não o são, uma vez que, como já vimos, a poética do artista constitui-se pela proposição de acordos entre natureza e artifício(cultura).Prova disto é a série Mutação em que o artista camufla as folhas de florestas com a fita amerelo-preto. A ele interessam tanto a natureza quanto a cultura, e a tendência de sua obra é a articulação esses signos de forma que os processos artificiais fundam-se aos naturais – até que se alcance a metáfora da “mutação”, maneira como a natureza absorve os padrões sinalizadores da urbe.

Falhas, ruídos (visuais e sonoros), fissuras, sedimentos, acomodações, imperfeições, deformações e todas as variações reconhecidas como “erro” que possam escapar às pré-determinações sociais, são do interesse do artista. O que está na lateralidade ou que é subjacente forma a massa com a qual fabrica suas “incertezas” e “possibilidades”.

Seu trabalho funciona como um sinalizador das coisas, algo que não nos deixa esquecer que há “imperfeições”, e que talvez devêssemos nos aproveitar delas, justamente porque o que nos parece imperfeito e falho é apenas um aspecto da maneira como construímos a cultura.
Em The Laughing Container – um container colocado em praça publica em cujo interior ressoam gargalhadas intermitentes de um grupo de pessoas – pontua o que Nicolas Bourriaud chama de “estética relacional”, isto é, “como o lugar geométrico de uma negociação entre numerosos remetentes e destinatários”.

Se por um lado é o riso posto em praça pública, por outro, é a irônica contenção do riso. Segundo Bergson, “nosso riso é sempre o riso de um grupo”. E ainda, “o riso tem justamente a função de reprimir as tendências separatistas. Seu papel é corrigir a rigidez, transformando-a em flexibilidade, readaptar cada um a todos, enfim aparar arestas”.

Para o artista, “a ironia e o humor possibilitam falar de algo com concisão e falar várias coisas ao mesmo tempo. O humor abre caminhos”. O humor, a ironia e a ambigüidade são recursos usados para desestabilizar a burocracia e a sisudez. É claro que causa um certo desconforto, mas é também a principal ferramenta ou o dispositivo utilizado no processo de interação e amálgama com o sujeito participante.

O artista usa espirituosamente o trocadilho e o jogo de palavras. Para Bergson “no homem espirituoso há algo de poeta” e, ainda, “no trocadilho, a mesma frase parece apresentar dois sentidos independentes, mas isso não passa de aparência, pois na realidade há duas frases diferentes, que fingimos confundir, aproveitando-nos do fato de terem o mesmo som aos nossos ouvidos.” E, de fato, neste exercício de imagem e texto que Marcos Chaves propõe há uma natureza da poesia: de um poeta visual.
Seus trocadilhos espirituosos provocam um “vácuo” onde há certezas absolutas e verdades definidas. Por esta razão, o texto (trocadilhos) sempre está patente em sua obra, para que possam ser instituídas diferentes vivências, tendo em vista que o status da sociedade está baseado em sobrevivências. A vivência pressupõe o arrefecimento do corpo. Seu procedimento com o texto nos lembra o sistema oriental budista de uso da linguagem, pergunta e resposta, no processo de descondicionamento do sujeito: o Koan.

Por fim, podemos perguntar: para onde nos conduz esta obra? Uma resposta seria que o resultado desse jogo complexo de intercâmbios promove ao final a aliança com o mito. No real nos aproveitamos de vivências mitológicas, porque de algum modo o mito é apresentado como um valor absoluto e a ele recorremos como fato do cotidiano. O homem é ele mesmo um objeto que tangencia meandros irracionais que lhe proporcionam integrar-se à natureza. Efetivamente? Talvez…como parte de ativos panoramas míticos. Como resume o seu trabalho “O Pote” – que funciona como um manual de instruções – onde a fábula irlandesa do arco-íris é rearticulada como experiência do real. O arco-íris e o pote de ouro são em ultima instância latências nas articulações com a vida. Vejamos:

“No verão entre 12h e 15h, vá às Paineiras na Floresta da Tijuca, entre na última queda d’água, no sentido Corcovado-Alto da Boa Vista, estique os braços sobre sua cabeça e coloque as palmas das mãos para cima, contra a ducha, observe o arco-íris que se forma no círculo d’água em volta do seu corpo”.

Marcos Chaves ‘ 


Alberto Saraiva

Rio de Janeiro, Setembro de 2008.

Notas

1. Neoconcretismo: movimento artístico surgido no Rio de Janeiro em meados da década de 1950 como reação ao concretismo ortodoxo. Os neoconcretistas procuravam novos caminhos dizendo que a arte não é um mero objeto: tem sensibilidade, expressividade, subjetividade, indo muito além do mero geometrismo puro. Eram contra as atitudes cientificistas e positivistas na arte. A recuperação das possibilidades criadoras do artista e a incorporação efetiva do observador apresentam-se como tentativas de eliminar a tendência técnico-científica presente no concretismo.

2. Bourriaud, Nicolas. Estética Relacional.1ª ed. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2006, p. 144 e p. 65.

3. Entrevista: Newton da Costa: Junho de 2008. http://revistapesquisa.fapesp.br

4. Bourriaud, Nicolas, op. cit., p. 29.

5. Bergson, Henri. O Riso. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 5.

6. Ibidem., p. 132.

7. Ibidem., p. 78.

8. Ibidem., p. 90.