Justapostos

2011
     

Uma paisagem é dissecada em vários planos distintos enquanto as perspectivas,
oscilantes, são reestruturadas num novo arranjo visual. Das imagens sobrepostas, como
que ativadas pela fricção dos encontros, elevam-se movimentos inusitados que evocam
e afastam, ao mesmo tempo, os primeiros estudos fotográficos que deram origem ao
cinema. Justapostos é um trabalho, sobretudo, de montagem. Uma montagem em duas
etapas e que tem início já no contato direto com os recortes do espaço definido. É o ato
fotográfico que destrincha a paisagem, fatiando o tempo e as ações em andamento. Na
sequência, a montagem prossegue com as imagens em mãos e é onde os planos se
embaralham. À medida que o trabalho vai ganhando corpo e deixando as perspectivas
clássicas renascentistas de lado, as durações estabelecem novos relevos, outros
encaixes temporais, não-lineares, transcorrem. Esculpe-se o tempo, como diria Andrei
Tarkovsky sobre o fazer cinematográfico. Nos primeiros trabalhos da série, Marcos
Chaves imprimiu as imagens em metacrilato, uma técnica que permite criar um efeito de
profundidade por conta da espessura do acrílico transparente, o suporte da impressão.
Todo esse peso, entretanto, somadas as várias imagens, demanda uma estrutura firme
para que o trabalho seja montado com segurança. E essa estrutura reforçada, conforme
distribui as imagens nos planos, deixa áreas livres nas laterais, posteriormente
preenchidas com espelhos. Espelhos planos, como se sabe, não apenas refletem a luz
do ambiente como virtualizam (e invertem) a imagem criada, dando a impressão de
estender tudo o que está no seu raio de alcance. Assim, os espelhos laterais operam em
duas frentes: ajudam a distribuir a luz na composição geral e amplificam o zigue-zague
entre o real e o virtual. Os novos trabalhos da série, executados em meados de 2022,
contam com outro padrão de montagem. As fotografias são impressas em chapas de
alumínio composto, mais finas, e montadas sobre uma estrutura leve que encurta
consideravelmente os vãos entre os planos. A proximidade maior entre eles produz um
volume mais homogêneo, compactado, aumentando a sensação de estranheza do que
supomos ver – um desencaixe que, em realidade, agrega. Sem assumir um ponto central,
mas centralidades, a paisagem não cessa de se ramificar.

Yan Braz

­Pieces, por Marcos Chaves

Do terraço do Café do Cine Odeon na praça Floriano surge um panorama brasileiro único. A exuberância da arquitetura Beaux-Arts do antigo império permanece ao lado da agitação racional paulista (do boom da década de 1950). O mosaico do pavimento da calçada do início do século lembra incontestavelmente a antiga Lusitânia romana. Enquanto isso, do outro lado da praça Mahatma Ghandi , uma fileira de palmeiras levemente inclinadas pelo vento traz à lembrança a infinita costa baiana e as ambições feudais dos velhos e cruéis capitães. Atrás dessa coroa de palmeiras paira a curva elegante do monumento brasileiro feito em homenagem aos mortos na Segunda Guerra Mundial. Uma estrutura que proclama o modernismo concreto vivido tão intensamente naquele lugar. Os espectros dos diversos passados do Brasil de alguma forma cintilam no ar, lado a lado. É como se o tempo do Sul, vivenciado aqui, não estivesse se movendo para a frente, como o diz a convenção do Norte, mas sim em espiral, para dentro e abraçando a si mesmo.

E no Café do Cine Odeon, toma-se café, é claro.

Cidade coreana

Encontrei Marcos Chaves pela primeira vez em um restaurante de churrasco coreano barulhento em Wang Jing – a nova megacidade satélite de Pequim. A curadora sino-brasileira Sarina Tang, que havia convidado Chaves a criar novas obras como parte de uma importante troca de experiências artísticas entre o Brasil e a China, gentilmente promoveu o encontro.

Eu interajo imediatamente com as intervenções performativas suaves e subversivas tão cheias de inteligência e humor; essas justaposições esculturais ready-made estão diretamente ligadas à forte experiência visual encontrada na minha cidade na China. Apesar de todas as comparações falaciosas entre a China e o Brasil, uma coisa que esses dois países realmente têm em comum é um talento natural para o inesperado e o improviso. É certo que a China é cheia de espantosos amontoados surrealistas de objetos cotidianos que mobíliam a rua aleatoriamente: um esfregão cor-de-rosa, sujo e de cerdas longas, pinga, pendurado em uma árvore; um sofá quebrado; uma tábua abandonada faz uma ótima mesa de carteado; na grelha a carvão que pertence ao dono do quiosque, um almoço rápido é preparado. Esses perfeitos momentos-escultura situacionistas da China são mais do que dignos da paixão observadora carioca do próprio Chaves.

São Paulo

Chaves aproveitou o período em que fez sua residência em Pequim para criar Pieces para a Galeria Nara Roesler. Ao conversar com Chaves, ficou claro para mim que essas obras são, além de um ponto de partida significativo em seu trabalho, reveladoras de um grau maior de intimidade com o qual o artista está se apresentando ao mundo. O trabalho é resultado de uma pesquisa de três anos e inclui cinco painéis fotográficos enormes e multiperspectivos. Nessas obras ambiciosas, o artista parece estar em sua própria jornada, ou reprise, mental. Em Ipanema, inicia-se perto de casa com uma vista a partir da floresta da Tijuca para a praia e além dela. Depois, começa uma viagem cujo foco é a natureza na cidade. Jardim exótico no topo da cidade medieval francesa de Eze, e Ficus macrophylla, uma árvore no Jardim Botânico de Palermo, Sicília. Ao final do dia, Chaves volta para a casa da qual ele tanto sentiu saudade com Prego, um misterioso macaco de Santa Teresa, em movimento, no crepúsculo.

Formalmente, esses trabalhos estão relacionados, como boa parte da obra de Chaves, à dinâmica de posicionar elementos no espaço. Aqui, perspectivas inversas distanciam o primeiro plano e trazem para a frente objetos distantes. Seus múltiplos pontos de vista nos convidam a deslocar nossa posição visual e a criar nossas próprias narrativas: o macaco pula de galho em galho; a luz no horizonte muda; aquela ilha única torna-se um arquipélago pessoal fictício, talvez até melancólico, e cheio de possibilidades. Enquanto boa parte da obra anterior de Chaves está preocupada com a criação de novos significados em momentos que seriam, de outro modo, esquecidos, estas obras basicamente apresentam ocasiões conscientes nas quais o artista, embora não visível fisicamente, está totalmente presente como um protagonista contemplativo.

A obra anterior de Chaves foi predominantemente calcada na lente, mas, para ele, a fotografia em si é quase uma consequência incidental em um trabalho intangível. Aqui, no entanto, a imagem fotográfica realmente se torna um objeto sofisticado de pleno direito. Os múltiplos pontos de vista dos grandes painéis são construídos com espelhos entre as margens, o que faz com que, como autores da imagem, reflitam o reflexo um do outro infinitamente. Paradoxalmente, ao revelar uma parte mais pessoal e efêmera de si, o artista, apesar de ter uma prática que se esquiva da materialidade, produziu como nunca objetos com mais substância física.

Santa Teresa & o Distrito de Chaoyang

Como constato na Cinelândia, a maneira com que histórias únicas e intensas do Brasil estão, de maneira tão palpável, disponíveis no presente faz com que elas iluminem a narrativa da cultura ocidental com uma clareza incomum. Mesmo a elegância do seu contraponto formal às hegemonias do Norte confirma até que ponto nós do mundo ocidental formamos uma esfera cultural grande e diversa. Meu encontro com o trabalho de Marcos Chaves foi exatamente dessa forma; por meio de sua obra, a lógica radical de cem anos de filosofia estética fez rapidamente sentido.

Perguntei-me: que característica indefinida fez isso acontecer?

Santa Teresa, Distrito de Chaoyang & Lusitana

Em 1990, a coreógrafa portuguesa Madalena Victorino apresentou uma obra muito importante na dança, chamada TORREFAÇÃO, no extinto moinho de café lisboeta Torrefação Lusitana. Um dos funcionários mais antigos do moinho, ao ver como os bailarinos misturavam seus corpos ao chão, às paredes e aos sacos impregnados de café, comentou com o performer Gil Mendo, muito francamente, “entrega-te ao café”. Nos últimos vinte anos, volto a pensar repetidamente nessa observação e percebo que ela contém uma prática cultural e estética que, imagino, seja mais determinante para a obra de Marcos Chaves do que se percebeu até hoje.

Essa prática de entregar-se está longe de ser uma postura artística que demonstra entusiasmo emocional. Trata-se mais de uma resposta sutil e disciplinada que une sofisticação e empatia na mesma medida. Ao longo dos anos, comecei a suspeitar que essa prática possa representar uma sensibilidade particularmente lusófona. Uma sensibilidade que detecto estar fortemente presente nas obras aqui apresentadas. Chaves é considerado um dos artistas mais cariocas e, considerando toda a inteligência presente na sintaxe da sua produção artística, é fundamentalmente essa prática de entregar-se que transforma suas obras em enigmas silenciosos e poderosos.

A obra em vídeo apresentada aqui, A árvore que caminha, mostra uma árvore gigante, semelhante a uma figueira-de-bengala, no Campo de Santana, Rio de Janeiro. As raízes aéreas penduradas formam uma imponente cortina sobre a calçada. Com seu característico humor observacional, Chaves captura o impulso de alguns transeuntes: o de erguer o braço e tocar os tentáculos fibrosos da árvore.

Eles certamente estão se entregando à árvore.

Simon Kirby
North South Lake, Zhejiang, China. Outubro de 2011