Retratos

2009
     

Marcos Chaves é um frequentador assíduo de feiras de antiguidades e mercados populares. Sua prática, não é novidade, está permeada de objetos comprados nesses locais desde a década de 1990. Ao visitar Dubai, cidade mais populosa dos Emirados Árabes Unidos, percorreu como de costume um desses mercados, localmente chamados por souk. Só que lá, em vez de adquirir objetos, um hábito dos comerciantes lhe chamou atenção e recebeu um olhar mais demorado. Dada a sua localização desértica, as frequentes tempestades de areia demandam uma limpeza incessante das calçadas e vias do mercado. Após a limpeza rotineira, feita com esfregões, um tipo de vassoura com cerdas de tecido absorvente, longas e moles, Chaves notou um costume compartilhado pelos lojistas: virar o esfregão de cabeça para baixo, ou seja, com as cerdas voltadas para cima, para que secassem, ao lado das lojas.

Essas observações resultaram em Retratos, série fotográfica que projeta uma inesperada individualidade desses instrumentos de limpeza por meio da tipologia desenvolvida pelo artista. Nesta série, ao dialogar com a tradição de retratos na fotografia, oriunda, por sua vez, da pintura, o artista tece um comentário perspicaz sobre o ato de retratar e suas implicações políticas no tecido social. Afinal de contas, quem foi (é) retratado? Há humor, decerto, se considerarmos que um retrato, para que seja bem-sucedido, deva despertar empatia. Se existe empatia, por seu turno, existe reconhecimento. Nos projetamos naquilo que vemos. Sabendo disso, Marcos Chaves recorre à pareidolia, fenômeno psicológico que faz com que nosso cérebro perceba significados ou padrões reconhecíveis onde na verdade eles não existem. Vislumbramos, assim, alguma expressividade cravada na estrutura dos esfregões, ao passo que suas cerdas longas e moles, feito cabelo, lhes dão organicidade. Singulares, ademais, são as texturas presentes nos fundos em que repousam os retratados. Do compensado ao mármore, as variadas superfícies dão a dimensão da frequência do uso do objeto, que possui uma certa semelhança entre si, como se viessem de um mesmo lugar, ou fábrica, e também manifestam nuances da vida econômica de um mercado popular numa das cidades mais ricas do mundo.

Yan Braz

“Retratos” não é uma exposição de fotografias do rosto humano. São 25 fotografias de esfregões ou “esfregonas”, espécie de vassoura com tiras de pano para esfregar o chão. De cabeça para baixo, com as tiras caídas sobre o cabo, elas lembram rostos: as tiras parecem cabelos caídos sobre os ombros e a estrutura vazada da parte do encaixe do cabo lembra olhos. O jogo simples dessa similaridade é levado às últimas conseqüências pela série. Cada um desses instrumentos de limpeza, todos da mesma espécie, adquire uma personalidade, um penteado etc.. Há neles um chiste visual, uma imagem irreverente como os bigodes que Marcel Duchamp pôs no retrato da Monalisa.

Estas fotografias, como outras anteriores do artista, são um tipo de “objet trouvé”, objetos encontrados elegidos como obras, mas como no caso eles são fotografados, seria melhor dizer “image trouvé”. Numa incursão pelo mercado popular de Dubai, uma espécie de SAARA genuíno, na cidade mais rica e populosa dos Emirados Árabes, Marcos Chaves observou os esfregões, que os comerciantes deixavam secando encostados na parede, ao lado de cada loja, de cabeça para baixo, depois de lavar a calçada. Os árabes a chamam, em inglês, “brooms”, em português vassoura; em Portugal se usa “esfregona”, no feminino, mais adequado ao objeto no contexto desta exposição. As “esfregonas” formavam, para quem passava na rua, dos dois lados da calçada, um “desfile” de máscaras, mas não como as africanas, primitivas, nem árabes, com turbantes. Sua imagem não pretende ilustrar a realidade exótica; ela surpreendeu os próprios comerciantes locais. O artista voltou ao mercado popular e a “anotação” virou a exposição. Em um mundo multiculturalista, esses retratos desconstroem com humor visões estereotipadas do outro. O costume local, que vivencia e modifica o espaço pelo uso, manifestava-se ali. Não são retratos posados, mas “flagrantes”. No lugar de uma etnologia do mundo árabe, eles revelam as mil e uma faces do objeto ordinário.

Completam a exposição três porta-retratos de marchetaria de motivos árabes com fotografias do sol. O jogo entre as “esfregonas” e retratos passa aí para o porta-retratos e a foto, cujo conjunto lembra uma típica paisagem desértica. O trabalho desmascara a representação tanto na arte quanto na cultura através do riso raciocinado, característico da obra de Marcos Chaves.

Novembro 2009.
Fernando Gerheim

Fotografias
impressão ink jet sobre Baryta Photo Rag Hahnemuhle
76×60 cm