academia (Neville Wakefield)

 

A cultura do corpo é uma cultura única. Na Europa, ela vem envolta em trajes e mistificações. Aqui, o corpo é o centro macio que espreita sob a carapaça dura das aparências, o primo envergonhado de uma alma existencial. Em linguagem bíblica, era a palavra tornada carne. Porém, nos climas mais frios do Hemisfério Norte, era a palavra que sempre vinha em primeiro lugar. O intelecto e a abstração da linguagem são os pais do instrumento desordeiro que é seu veículo. Em outras palavras, a cabeça comanda o coração.

Ao menos quando visto de fora, o Brasil é constituído da maneira oposta. Aquilo que é nossa cultura é, para vocês, um culto. No Brasil, o corpo está envolto não em roupas, mas no calor do momento, eternamente banhado pelo sol melífluo. Ele é governado não pela cabeça, mas por áreas mais distantes da retidão cerebral. O clichê do corpo, que em outros lugares vai do corpo do trabalho para o corpo político, é aqui simplesmente o corpo lindo, o templo de um estilo de vida saudável no qual ele próprio é o local da intervenção criativa. Talvez mais do que em qualquer outro lugar, no Rio e no imaginário a ele associado.

No Rio, a praia é a mescla do social e o natural, da conversa e da carne, da areia e do lúdico. Despido de tudo exceto a menor das modéstias, ela tornou-se um espaço unicamente democratizado onde hierarquias são postas de lado qual roupas indesejadas. Aqui, as pessoas vestem o corpo. Ao invés de algo a ser revelado somente na intimidade e na privacidade, ele é a manifestação pública do eu e faz tanto parte da natureza quanto o Pão de Açúcar, os Dois Irmãos ou a areia de Ipanema. E, assim como a praia, o corpo em si se tornou um ponto turístico, um paradoxo ao mesmo tempo construído e real. A fotografia captura essa ambivalência. Como memórias selecionadas, nossas fotografias são cartões postais dessa democracia, de paisagens que podem ser vistas, mas não tidas, de corpos que podem ser olhados, mas não tocados, das coisas que desejamos e que não são nossas.

Marcos Chaves compreende isso melhor do que a maioria. Seu olhar é o do flâneur e as imagens que ele cria alternam-se com facilidade entre clichê e entendimento. Diante do icônico pano de fundo de uma paisagem reconhecida por todos, mas conhecida por poucos, ele encontra objetos que repartem significados e perfuram a realidade fabricada como as lanças metálicas que mantêm a divisão social extremamente real. O Pão de Açúcar é o pano de fundo para tudo isso. Ele preside as ordens natural e social da orla, uma inevitável presença lapidária que nos lembra da fugacidade cômica das atividades que os nossos corpos trazem ao seu litoral. Muito depois de a garça desinteressar-se do isolamento prateado, muito depois da última onda do dia ter sido surfada, de o gás da bomba do chuveiro ter sido desligado, ele continuará testemunhando as pequenas mudanças que marcam o pulso em constante mutação desta grande cidade.

Assim, o Pão de Açúcar guarda todas as coisas – tanto a complexa invasão da economia global quanto as simples liberdades da praia. Ele é ao mesmo tempo cena e cenário. É também o pano de fundo para outro trabalho de Chaves, no qual as palavras ‘Eu só vendo a vista’ aparecem em negrito. O título é um trocadilho com o verbo ‘vendo’ – que pode significar ver ou vender – e expressa nossa ambivalência com relação à vista, uma vista que pertence aos cariocas e é vendida ao mundo. Agora, mais do que nunca, quando a cidade expira uma Copa do Mundo apenas para inspirar as Olimpíadas, o ar coletivo de criatividade, esporte e saúde – exatamente as coisas que são gratuitas para todos e tidas como certas – passa a trazer consigo a etiqueta de preço de um novo tipo de turismo. A ironia – que não escapa a Chaves ou à cultura por ele propalada – é que a própria cidade que celebra a liberdade do corpo acima de tudo seja anfitriã de seu interesse mais comercial.

Por exemplo, a percepção de que nosso corpo também está à venda. Podemos até não estar conscientes disso, pode até ser que Foucault não estivesse totalmente certo em afirmar que toda a indústria do exercício físico é simplesmente mais um exemplo de poder, identidade e conhecimento reunidos para nos regular e controlar enquanto almejamos autonomia. O que é certo é que os mecanismos que utilizamos para dar forma a nosso corpo são também um reflexo das culturas das quais eles derivam.

As requintadas academias hi-tech, que medem calorias e watts e calibram nossos gastos energéticos em telas de LCD com monitores de frequência cardíaca, estão muito distantes do ferro que manifesta sua impressão diretamente no volume e definição do corpo pré-industrializado, feito em casa. Nada poderia ser mais diferente das chamadas academias ‘Flintstone’, cujas soluções improvisadas com cimento, areia e barras de ferro tornam-se esculturas engenhosas nas quais o próprio material da praia contribui para os corpos que elas criam. Aqui, o trabalho repetitivo e solitário da esteira e dos aparelhos de resistência é transformado em pura performance e exibição social. Aqui, as multinacionais sem face das academias são substituídas pelo modelo cooperativo da comunidade local. Aqui, o aparelho de resistência talvez seja o próprio corpo.

E se tudo isso soa um pouco complicado e pesado, talvez seja porque as obras de Chaves em si são generosas e leves. A política que governa os corpos talvez envolva as academias informais, assim como contamina a luz da hora mágica. A Academia, título da exposição, refere-se em última instância ao fato de que as instituições mais respeitadas do Rio são escolas e academias. Talvez haja ironia no fato de que elas são de samba e ginástica, respectivamente. Contudo, a beleza de suas formas improvisadas nos permite lembrar, pelo menos por um momento, que longe do ruído das multidões que visitam o Maracanã e das brigas internas dos comitês olímpicos, algo muito mais elementar está acontecendo. É algo feito de areia, pedra e cimento e que está disponível a todos.