Chaves para Leituras (Ligia Canongia)

 

“É sempre desejável que se tenha duas idéias – uma para destruir a outra”.
Braque

“A forma não acompanha a idéia. Porquê ?” (1) – desabafou, um dia, Cézanne a Joachim Gasquet. E, exasperado, gritava e atirava os pincéis para o alto.

Tudo constituía-se na angústia de atingir a comunhão perfeita entre a imagem plástica e a imagem mental. A questão era de como compor uma visão intelectualizada do mundo que pudesse dar conta da aparência das coisas, de como projetar na tela a inscrição mental da realidade, como chegar a uma percepção “verdadeira” do mundo, filtrada pela visão particular do artista.

Essa pergunta – a respeito do ajuste da idéia à forma – parece ter dado origem às pesquisas de Cézanne quanto a uma representação que não mais se apoiasse apenas nos dados da natureza, tornando-se, antes, uma especulação do espírito, criação puramente intelectual. Cézanne queria, de fato, atingir as estruturas implícitas nas aparências, chegar à ossatura das coisas. Dizia ele: “pintar não é copiar servilmente o objetivo” (2).

Mesmo os impressionistas, antes dele, e detonando um processo que iria percorrer toda a modernidade até a era contemporânea, já haviam tentado dissolver a separação entre o que é visto e o que é representado. Para os modernos, a pintura naturalista não era nada naturalista, uma vez que representava por meio de uma convenção geométrica, euclidiana, totalmente artificial. Traduzir o quê e como realmente se vê, essa era a questão. Os impressionistas, como Cézanne, optaram por priorizar a lógica do sujeito que vê, em detrimento do objeto visto. E isso não deixa de ser uma recusa do objeto, uma maneira de fazer ascender a idéia sobre a forma.

Mas, foi Duchamp quem elevou a questão aos limites que hoje conhecemos. Um quarto de século mais tarde, ele eliminou a pergunta de Cézanne, suprimindo sumariamente a forma. Restou a idéia. Como costumava dizer, não há solução, porque não há problema. Submeteu, então, o mundo da representação ao mundo da idealidade pura, tornando-se o mais platônico dos artistas da modernidade.

A materialização da Idéia fundou a abstração, fundou o readymade duchampiano, fundou a Pop e está na base de grande parcela da produção contemporânea, aquela que prescinde dos elementos sensíveis e elege os dados intelectuais como fundamento. E nesse filão foi, sem dúvida, a arte conceitual a que levou os níveis dessa intelectualidade a instâncias insuperáveis.

 

 

 

 

 

Quem poderia, nos dias de hoje, lidar tão somente com o sensível imediato? Quem se atreveria a revogar a conquista da lógica conceitual sobre o mundo da matéria ? É difícil imaginar que as sensações puras dessem conta da realidade complexa que vivemos. A habilidade manual e a tela convivem agora com objetos já tomados diretamente do real, já produzidos, e os suportes de trabalho se diversificaram. A plasticidade “artística” confunde-se com o cotidiano, com a vida banal, e o fenômeno também não é novo; remonta igualmente aos tempos modernos e ao advento da indústria.  Quando Marcel Duchamp propôs o readymade, dissociou inteiramente a questão da plasticidade da noção de arte, e tornou caducas todas as práticas que ainda preservavam algum ideal de beleza, em seus termos clássicos.  Ao belo e ao bom gosto, reagiu com a indiferença. Dividiu, com a indiferença, o mundo da arte em duas partes: antes e depois do readymade.

O que faz um trabalho ser uma obra de arte ? perguntava-se Duchamp. Para ele, não era necessário o sentido de criação, em que o artista tem pleno controle sobre o fazer. Um ato de seleção seria suficiente para instituir o objeto selecionado na esfera da arte; na seleção estava a “criação”, pois ali residia já a idéia. Naquele momento, Duchamp dava à forma o caráter de acidente, desqualificando-a .

O trabalho de Marcos Chaves pertence a essa linhagem histórica; à linhagem das obras que vieram se interrogar sobre a qualidade e a função do objeto de arte, dando a ele cada vez mais o valor de pensamento e menos o de forma sensível: um objeto, portanto, mais ético do que estético. Ou melhor, à linhagem daquelas obras que ajudaram a transformar a própria noção do que seria “estético”. O que sobra do readymade senão seu enunciado ? O que o mantém ancorado no mundo da arte, se nega a própria arte, enquanto formulação sensível do mundo ? O readymade devassou o cul–de-sac dos caminhos da pintura, culminado em Malévich; declarou o fim do processo artístico como fazer, como habilidade e virtuosismo. O sentido do trabalho manual perdeu sua razão de ser no universo das técnicas mecânicas. E, derrotado o trabalho manual, restou a arte como articulação puramente mental, sujeita à inteligência, mais do que aos sentidos. Duchamp diria que, se a máquina pode fazer, tudo o que nos sobra é escolher dentre o que está feito, e aí não há mais lugar para a contemplação e a beleza. Caberia ao artista recolher-se à condição do pensador que comenta o mundo, elegendo coisas desse mundo dado. O ato da seleção sendo o bastante para interpretar e abrir novas significações para a realidade. Uma operação tão simples conteve uma radicalidade tão grande a ponto de modificar o destino da história da arte e vir apresentar-se, fresca e vigente, em nossos dias.

 

 

 

 

 

 

Marcos Chaves certamente considera o potencial aberto pelo readymade e sabe de seus desdobramentos no período contemporâneo. Não está interessado no produto formal, no objeto “artístico”, na esteticidade. Nem de longe cogita a renovação do belo ou do mítico. Construir a obra de arte pode ser extrair um objeto comum de seu ambiente funcional, combiná-lo a outros, mudar seu contexto lógico, acrescentar palavras ou outros meios vindos de fora da esfera estrita da visualidade, jogar com as articulações mentais, com o humor, com o acaso. Esses são os seus procedimentos “estéticos”.

Como o readymade de Duchamp, o trabalho de Chaves persegue o caráter disjuntivo das coisas que saem de seu meio e função originais. São objetos que interferem sobre a ordem institucional, surpreendendo, nas coisas simples, valores que a convenção dissimulava. Faz deslocamentos imprevisíveis e constrói assemblages com tom de paródia, destilando aí a sua observação aguda sobre o mundo que o cerca, e não poupando nenhum segmento; dos produtos tecnológicos ao lixo.

As coisas de que se apropria, na maioria das vezes, são produtos de consumo popular. Faz parte das preocupações do trabalho observar não apenas a estética que é dirigida às grandes massas e por elas absorvida, como ainda as manifestações que partem naturalmente do povo, do meio urbano e do comércio do mau gosto. Esses produtos, paradoxalmente, acentuam a força do comentário “culto” da arte, e ajudam o artista a enfatizar o tom jocoso de certas associações. O humor entra aí como uma lâmina fina que critica o lugar do senso-comum, da uniformização e da falta de discernimento no consumismo “selvagem”. O humor, porém, é mais do que isso: intervém sobre o significado original do objeto e  enxerta outro por um movimento imprevisto, um desconcerto, uma piada.  O humor abre para uma interpretação que se opõe diametralmente à banalidade do objeto, dando-lhe, ao contrário, originalidade . De um lado, temos uma operação que satiriza o kitsch e o consumo, através da apropriação dos mesmos produtos que os alimentam, e, por outro, uma operação que os integra ao mundo do “refinamento” intelectual da arte. O humor, segundo Marcos Chaves, “é uma forma de tirar a tragicidade das coisas”, de olhar o mundo de outra maneira, menos fatal. Já Duchamp, considerava que apenas uma idéia “divertida” poderia interessá-lo, porque minorava o sentido da “responsabilidade”. Operações que se confundem, de certa forma, com o humor negro, que tira do contexto sério a sua seriedade, a sua densidade trágica, para tentar torná-lo simplesmente “divertido”. Em Marcos Chaves, essa conotação pode chegar, inclusive, a assumir tons de crueldade, mas uma crueldade que se esconde e se dilui através de uma nota humorística discordante.

 

 

 

 

 

O que também aproxima Marcos Chaves do grande mestre Dada é a impessoalidade. Embora a presença do sujeito-artista se manifeste, nos atos de escolha, na articulação das partes e dos sentidos, nas atitudes de intervenção sobre a realidade, não é um sujeito lírico, com seu drama existencial. É o sujeito intelectual, regido pelo pensamento. Mas, note-se que é uma inteligência intuitiva, que não reduz o pensamento à razão cartesiana, indutiva, ao contrário, dá elasticidade ao raciocínio pela intuição. O sujeito tenta se ocultar mesmo na inserção de enunciados verbais que poderiam parecer, à primeira vista, opiniões. Na verdade, essas inserções também são meros lugares-comuns, frases repetidas por gerações, como não falo duas vezes, ou frases comerciais, como eu só vendo a vista, tão readymades quanto os objetos. É claro que tais enunciados apontam para direções múltiplas, quando articulados no contexto da obra, que, de resto, mantém-se inserida no campo visual, e corresponde a um conjunto visivo  onde outras matérias estão em jogo. Interessa observar que a impessoalidade de Marcos Chaves encontra correspondência na obra de Duchamp na medida em que sua obra também procura ser deliberadamente objetiva, embora nunca tão “indiferente”. Obras como Pharmacie, 1914 – nome dado a uma gravura popular tomada como readymade por Duchamp, não tem a menor relação com o título. A idéia era exatamente explorar esse non-sense, essa obscuridade. Já as inscrições verbais de Marcos Chaves têm contato com os elementos visuais, e mesmo que leiam ao avesso ou de forma oblíqua, existe correlação entre as palavras e as coisas, elas estão ali para produzir sentido. No fundo, a obscuridade absoluta não havia nem mesmo em Duchamp, e ele sabia disso. Embora buscasse não estabelecer relações possíveis ou torná-las tão metafóricas que quase inatingíveis, ele declarou, a respeito da justaposição palavra/coisa: “Eu esperava, evidentemente, que tudo não tivesse sentido, mas, no fundo, tudo acaba por ter algum” (3).

Chaves explora as extensões possíveis dos significados das coisas e das palavras. É como se as tomasse nas mãos e as lançasse para cima como dados, para que revelassem, ao cair, novos números, combinações sempre diferentes a cada vez. São justaposições, associações, aproximações que buscam tatear virtualmente a infinidade de mundos potenciais em um só fato plástico. Ele trata o objeto da arte como Lacan tratou a cadeia dos significantes verbais. Uma enorme gama de significados pode estar aberta a partir de um único significante visual, que é a obra. Ela, a obra, será para o artista um mero veículo, apresentado em sua significância latente. Algo que se expõe como índice, não como coisa fechada; que comporta possibilidades relativas de decodificação, como a difundida noção de “obra aberta” de Umberto Eco, que ajudou a formar a geração do artista.

O trabalho não falo duas vezes (1996) é um exemplo de como as palavras podem assumir significados multidirecionais, e a atividade “plástica” ser apenas residual. A obra resume-se a uma placa de vidro transparente colocada a certa distância da parede. Na placa está escrito “falo duas vezes” e na parede fica, sozinho, o “não”. Esse descompasso nos planos onde os termos estão inscritos, apesar da distância ser mínima e reduzida pela transparência da placa, é fundamental, e aí reside toda a diferença. Quando olhamos o trabalho, lemos imediatamente a frase inteira e unimos as partes que estão separadas. Mas a projeção da sombra do enunciado que está na placa – “falo duas vezes” – surge na parede como um fantasma, que superpõe uma afirmação diferente, pois, ao repetir o “falo duas vezes” duas vezes, nega o enunciado inteiro original. Apresenta a afirmação como mentira, pois faz o sujeito que fala, falar duas vezes. O “não” é trazido para um plano onde ele não está, e parece que apenas na placa lemos a afirmação inteira, que é por sinal uma negativa; enquanto que o que estava apenas na placa parece ser o que está na parede, sendo essa projeção em sombra a negativa daquela afirmação. Com uma simplicidade imensa, a obra articula um nível de complexidade extraordinário. E carrega ainda outras implicações. Uma das hipóteses é a de que frases chavões, de uso desgastado, são, como já dissemos, tão readymades quanto objetos, e podem passar para o domínio do imprevisível pelo simples deslocamento de contexto, ou por alterações nas formas de sua presentação. Há ainda a referência ao “falo” como figura sexual, e esse dado não é nada desprezível na obra de Marcos Chaves, toda ela permeada pela sexualidade. Só que o “falo” não tem tanto uma conotação sexual nesse trabalho quanto a conotação do “poder”, que ele representa. E lembremos que normalmente a frase “não falo duas vezes” é proferida em situações em que alguém quer mostrar autoridade. O trabalho de Chaves tem o poder como alvo de sua ironia, e a idéia de poder pode ser desdobrada na idéia de convenção. Ora, a frase “não falo duas vezes” já se tornou tão convencional que, via de regra, quem a profere não se propõe verdadeiramente a cumpri-la. Por extensão, a convenção aparece como mentira, falsidade, artifício que encobre a veracidade das coisas. E teria então a arte a capacidade de garantir verdades ? A ambigüidade do trabalho de Marcos Chaves prolonga-se nesse campo, não poupando a si mesmo. Afinal, Picasso já dissera, em 1923, que “do ponto de vista da arte, existem somente formas que são mentiras mais ou menos convincentes”. (4)

Outro trabalho que mostra a inteligência dessas articulações chama-se come and watch me (venha e veja-me), 1997, com operação similar. A inscrição da frase é sobre espelho e quando o espectador se aproxima, atraído pelo convite, só vê a si mesmo, refletido no espelho. Aquele que chama para ser visto não é visto, o visto é aquele que vê. Além disso, a afinidade de sons, levando a prolongamentos semânticos e à criação de ambigüidades, é sempre uma preocupação do trabalho, e “come” (venha) tem a mesma pronúncia em inglês que “cum” (goze) e pode desdobrar a significação para “goze e veja-me”, numa situação em que o voyeur e o narcisista se encontram, remetendo novamente ao espelho.

A tentativa de relativizar ou multiplicar a significação e a decodificação faz parte da matéria mesma do trabalho, de sua estrutura. Desde o início da carreira, em meados da década de 80, Chaves já criava situações ardilosas para a leitura da obra. Hanged Man, 1987, é outro exemplo. O desenho/colagem constitui-se das palavras “hanged man” (homem pendurado) escritas em cima, com o “A” de “man” invertido, uma letra “O” colocada à esquerda no meio da folha, a letra “E” à direita em igual posição, e a letra “S” embaixo. No centro, um pedaço fino de madeira, levemente inclinado, atravessa o papel.

 

 

 

 

O homem pendurado é uma carta de baralho do tarô, onde o homem aparece preso pelos pés. Aquele que é fadado a viver de cabeça para baixo, nunca sabe se é ele ou o mundo que está invertido, ou mesmo se é essa a situação normal, fora de um eixo conexo. Desenvolvendo a idéia, Marcos Chaves coloca o “N” contido na própria palavra “hanged” como o ponto Norte, e sinaliza as outras direções com as demais letras presentes: “O” (oeste), “E” (leste), “S” (sul). A madeira inclinada funciona como o ponteiro de uma bússola, que une o Norte ao Sul. Ora, trata-se de referência a uma convenção científica e internacional que orienta o sentido do espaço, mas que, no trabalho, é relativizada pelo olhar daquele que vê distintamente as direções, e que, por ver o mundo de forma invertida, inverte automaticamente o sistema.

Esse trabalho, pontual, já revelava a multiplicidade de conexões cabíveis a partir de extrema economia de dados, assim como o espírito de armadilha criado para a decifração. Revelava ainda a agilidade mental do artista, sua capacidade de articular jogos entre palavras e coisas, e o tipo de relações que elas estabelecem entre si na composição da imagem. Apontava também para a complexidade semântica que tais imagens podem engendrar, apesar de sua aparência simples e despojada.

Há sempre possibilidade de dupla leitura, duplo significado e, não raras vezes, o artista trabalhou com a conjugação de dois objetos. A idéia do duplo tendo sempre por objetivo criar, a partir de duas coisas, uma terceira.

Toda a série desenvolvida com o título de Hommage aux Mariages (homenagem aos casamentos),1989, parte desse princípio. E nela as significações proliferam. Tentaremos cercar algumas.

Primeiro, o título. O som das palavras, em francês, soa de tal forma semelhante que é quase como se repetíssemos a mesma palavra duas vezes. É uma cadeia sonora única. Duas palavras diferentes e dois sons iguais ressaltam a própria idéia do “casamento”, entendido como a distinção perdida na simbiose. Há ainda na palavra “hommage”, uma remissão à “homme” (homem), assim como  “mariage” contém Maria, nome feminino. Hommage aux Mariages, por sua cadeia indistinta de sons, indica, por extensão, a indistinção entre pessoas e a indeterminação sexual. Hommage aux Mariages é, assim, uma homenagem à impossibilidade do casamento, e, nesse aspecto, um tributo a Duchamp e a seu Grand Verre.

Depois, a cor. Todos os trabalhos dessa série, e não foram poucos, são amarelos. A mesma cor, em vários “casamentos”, uniformiza a variedade, indistingue os pares, reduz o duplo a uno.

Em seguida, a natureza dos objetos escolhidos. Exemplos: duas escovas de cabelo de plástico, daquelas redondas de camelô, bem populares, unidas por seus próprios dentes e penduradas do teto; duas cadeiras de comida para bebê, amarradas por fios de náilon; dois aparelhos de barbear, costurados. Objetos da vida diária, inofensivos, vulgares, que adquirem um senso de estranheza incomum, que, de cara, abate a noção da união, do “mariage”, simplesmente por não fazer sentido essa união, nessa situação. No contexto proposto, no

 

 

 

 

“casamento”, os objetos não realizam as funções que vieram desempenhar no mundo. Seria então o casamento uma aberração ? Convenções são aberrações ? Não caberia à arte comentar os despropósitos do mundo, da vida convencional ? A convenção, por princípio, impede o arbítrio, e arte é puro arbítrio, suas decisões dependem de uma vontade. No fundo, como mencionamos acima, o trabalho de Marcos Chaves se opõe ao poder, articula-se de forma a reagir à autoridade convencional, quer seja ela de natureza psicológica ou social, aí entendidas as convenções da própria arte.

É importante notar, porém, que tudo é construído de maneira a manter a opacidade do objeto e, mais ainda, a opacidade do sujeito, que declara apenas obliquamente a sua “vontade”. Nada se apresenta com clareza imediata, apesar da aparência singela e espontânea dos objetos. As coisas se protegem atrás da estranheza, os significados se esquivam, e o sujeito também resvala na falta do lirismo. A atividade mental, objetiva, que ultrapassa a expressão lírica, não implica, porém, e necessariamente, um pensamento a priori. Não há o projeto, e depois a materialização. As coisas surgem juntas, no ato, como em Cézanne. No fundo, é a mesma operação. O objeto ergue-se ao se articular por inteiro, mesmo que a forma não se pretenda mais “estética” e a idéia se sobreponha. Palavras e coisas demandam-se umas às outras. O resultado formal é aquele que surge na conjunção mental do ato que institui a obra, na emergência da atitude.

Quanto à natureza não-estética dos objetos, desses produtos, afinal, anti-formais, remonta à velha discussão sobre a relação entre arte e indústria, sobre os processos que buscaram lançar a arte na vida real, e sobre a questão de que o objeto de arte possa ser substituído pela idéia do trabalho. Em seu texto Desestetização, de 1970, Harold Rosenberg pontuou: “o princípio comum a todas as espécies de arte desestetizada é que o produto obtido, se é que há algum, é de menor importância do que os processos que o realizaram e dos quais ele é o sinal”. (5)

Essa “espécie” de arte, feita com materiais e fatos reais e imiscuída no cotidiano, resiste às técnicas artísticas tradicionais, não é dirigida à satisfação dos sentidos, e propõe, ao invés, uma interrogação fundamental a respeito de sua própria natureza e do papel que pode cumprir hoje no mundo. Ela é, para usar o termo de Rosenberg, o “sinal” dessa investigação. Com isso, ao se desestetizar, vai contra todo o pensamento formalista que descende de Clement Greenberg, e afronta o primado da Forma, das técnicas e das convenções. Em vez de restringir-se ao que pertence estritamente à experiência visual, dá-se como experiência intelectual, lança mão de outros códigos, e sai do domínio puro do visível. No lugar do valor estético, o ato mental; no lugar do juízo de gosto, a indiferença: no lugar da racionalidade, o absurdo; e, ao invés do fazer, o escolher. O oposto do raciocínio greenberguiano.

 

 

 

 

 

Um dos trabalhos mais radicais de Marcos Chaves no sentido da desestetização foi a instalação de 1990, Comfundo.  Constituía-se de uma série de sacolas de papel pardo e alças de plástico preto, emendadas uma à outra na vertical, de maneira a criar colunas. As colunas eram penduradas do teto pela alça e não chegavam a tocar o chão. Apenas a primeira sacola, presa ao teto, tinha alça, e apenas a última tinha fundo. O efeito era de sacolas extremamente compridas, absurdas, como foi o gigantismo das esculturas de Claes Oldenburg. O ambiente da galeria era saturado dessas colunas, perfiladas em linha reta, mas compondo um labirinto. O caminhar do espectador no espaço não o levava a nenhum lugar em especial, e a experiência se esgotava em flanar entre as colunas, sem destino. É importante notar aqui que Marcos Chaves tem formação em arquitetura, e que a função dos pilares de sustentação de edifícios estava sendo parodiada ali com humor, acentuando-se o fato de estarem suspensas e balançarem com o vento ou com o deslocamento do ar provocado pelos passantes. Elas deixavam a arquitetura a descoberto, sujeita à fragilidade de uma má “engenharia”. Sacolas insignificantes, antes usadas em supermercado, adquiriam ali uma significação incomum.  A lógica imprevista de seu uso, alterado por efeitos de imaginação, a precariedade do material e a leveza dos volumes vinham confirmar o non-sense da operação. Na verdade, a própria noção de “suporte” era questionada: suporte da construção ideal, suporte do trabalho de arte, suporte do significado, suporte do espaço, suporte da forma. Inoperantes, as colunas não “suportavam”, ao contrário, eram móveis, frágeis, agentes de uma arquitetura incongruente, sustentada pelo vazio. E a fronteira entre os vazios pode ser uma folha de papel ou um saco com fundo. Eis então que o título se impõe, fazendo a junção no termo “Comfundo” e mantendo o duplo significado explícito. O caráter serial do trabalho, por sua vez, afirmava obsessivamente a duplicidade, ou ainda, a multiplicidade. Não há lugar para o original, para a unidade, idéia que remonta, novamente, aos processos industriais e à repetição, e que fundamentou a Pop Art americana. O objeto passa a ser apenas elo de um processo em cadeia, indistinto.

Manobra semelhante marca outra instalação, Lugar de Sobra, de 1995. Novamente o sentido da série tenta a uniformidade, só que agora cada objeto preserva um mínimo de individuação. E de novo o material é desestetizado ao extremo. São peças de mobiliário, mais especificamente banquinhos usados, velhos e deixados a esmo pelas ruas. O trabalho aponta várias leituras. Para começar, não se trata mais de um produto industrial, mas de banquinhos feitos a mão, na maioria obra de um “jeitinho” pobre e popular, que constrói utensílios com refugos de madeira, com sobras. Mas, o artesanato não se eleva à categoria de produção “acabada”, muito menos empresta ao objeto uma estética. O objeto acaba por possuir o mesmo espírito do assemblage dadaísta: uma forma dissociativa, feita por acumulação de pedaços, por justaposição de partes, uma anti-forma.

 

 

 

 

Dissemos que cada banquinho mantém uma individuação mínima, porque, de fato, são diferentes uns dos outros, mas a precariedade de sua construção, o aspecto surrado de todos e a indefinição de seus contornos é tamanha, que eles não retêm o olhar de ninguém, não realçam qualidades. No fundo, são tão indistintos quanto um produto da indústria feito em série, tão “insignificantes” quanto queriam ser os readymades de Duchamp. São produtos igualmente casuais, e que tornam a casualidade da escolha mais indiferente ainda, qualquer um serve.

Outro dado importante é que os banquinhos são colocados em exposição e podem ser utilizados pelos espectadores para se sentar. Eles substituem os bancos que existem normalmente nos museus para que o público contemple a obra. Só que eles são “a obra”, e o objeto da contemplação falta. O mundo é esse objeto. Lugar de Sobra inclui a obra, o público e o resto do mundo no mesmo lugar, por isso ele é de sobra, é amplo. É de sobra também porque são muitos os banquinhos e ocupam grande espaço. E é de sobra porque os objetos são sobras do mundo, o resto. É o lugar do refugo, do lixo, da pobreza e da carência, mas é também, paradoxalmente, o lugar da fartura. Falta e sobra ao mesmo tempo.

 

A partir do final dos anos 90, Marcos Chaves passou a produzir a partir de fotografias. Tudo a ver com a natureza de seu trabalho, considerando que o processo fotográfico pode corresponder à manobra do readymade. A operação da fotografia, o ato fotográfico em si, acompanha muito de perto a lógica do ato de Duchamp.

Philippe Dubois afirma que o tempo fotográfico é descontínuo, porque o gesto do fotógrafo, o cut que ele efetua no contínuo do real, suspende a realidade e a isola do tempo crônico, evolutivo. É uma operação que separa uma fatia do mundo do resto do mundo, que congela esse fragmento no instante, tornando-o um instante perpétuo, eternizado. O recorte efetuado sai de “nosso tempo de seres humanos inscritos na duração, para entrar numa temporalidade nova, separada e simbólica” (6). A fotografia não se dá progressivamente, como ocorre na pintura. Ao contrário, o fotógrafo “corta” e é esse corte que determina a imagem. A imagem não é “composta”, ela vem por inteiro, de uma só vez, subtraindo uma parcela do mundo em bloco, captando todo o objeto, já pleno. Esse corte radical da continuidade é o ato que fundamenta a fotografia. Ora, sabemos que Duchamp instaura o readymade depois de sua experiência na pintura, depois de observar que o métier pictórico era impotente para enfrentar a realidade da máquina, inclusive a da máquina fotográfica. O readymade veio justamente declarar a falência do “fazer” pictórico, do exercício progressivo desse fazer manual e compositivo. Na verdade, o readymade é o sinal da impotência do pintor na sociedade industrial, e seu aparecimento deve-se ao declínio da pintura e à redenção da arte enquanto idéia. A mesma lógica que governa o ato fotográfico, governa o ato duchampiano. O readymade é também uma escolha que suspende o objeto do contínuo de seu meio original, da sua cadeia progressiva, também o retira do curso natural de seu funcionamento e sua significação. O readymade é outra sorte de cut, que interrompe o fluxo de um objeto, deslocando-o para outra ordem simbólica. E também ele já é o objeto pleno, inteiro, captado por uma subtração efetuada no tempo e no espaço.  O disparo que preside a operação fotográfica é o mesmo disparo que isola, no readymade, uma porção do mundo.

É importante sublinhar que Marcos Chaves não é fotógrafo, não pretende que as imagens fotográficas com que trabalha sejam imagens “artísticas”; a foto sendo tão somente esse disparo que colhe imediatamente a fatia do real que lhe interessa. O readymade não precisa ser, necessariamente, um objeto, um elemento tridimensional, uma coisa. Ele pode estar em qualquer situação já dada, já feita, e essa situação pode ser a paisagem, uma cena achada nas ruas, ou pode ainda ser foto de alguma coisa especial, uma intervenção do próprio artista, mas que, por ser apreendida no imediatismo do disparo, é capaz de dar ao artista a imagem que interessa mais rapidamente. Além disso, a foto tem a particularidade de multiplicar o trabalho, reproduzí-lo em grande número, efetivando uma das principais premissas do próprio readymade, que foi a dessacralização da obra de arte e do mito da autenticidade. E mais, com as técnicas digitais de hoje, os artistas podem lançar mão de artifícios ágeis de construção e criar assemblages, por exemplo, com uma facilidade que teria maravilhado os dadaistas.

O trabalho de Marcos Chaves que se tornou mais notório no âmbito do uso da fotografia foi o eu só vendo a vista, de 1997. Trata-se da apropriação do Pão de Açúcar, ou melhor de um ícone da cidade do Rio de Janeiro, imagem com que nos defrontamos todos os dias e que sofre o desgaste dessa recorrência, tanto quanto a bandeira norte-americana em relação a seu país, aos olhos de Jasper Johns.  Mais do que tratar o Pão de Açúcar como readymade, o que Chaves se apropriou foi da imagem turística da paisagem, vendida aos montes como cartão  postal. A ponto desse postal fazer a “beleza da natureza” tornar-se “indiferente” para nós. Deslocar o cartão postal das bancas de jornal ou das agências de turismo para o campo da arte não significa porém re-qualificar o Belo natural. A idéia deve ser, antes, a de desviar a paisagem, a natureza, para o campo intelectual do pensamento que vai agir sobre ela, transformá-la. E aqui entra a inserção da frase “eu só vendo a vista”, com toda a sua ambigüidade semântica. O fato do artista ter retirado a crase da expressão “à vista” foi essencial para que essa ambigüidade se cumprisse. Desdobrou seu potencial significativo para várias leituras. Ali estão contidos os enunciados: “eu só, vendo a vista” (o sujeito solitário que vê uma vista); “eu só vendo a vista” (o sujeito que só vende a fotografia da vista, o cartão postal – ou o sujeito-artista que só vende a obra em suporte fotográfico com a vista retratada; ou ainda o sujeito que só vende os olhos) e, por último, “eu só vendo à vista” (o sujeito que não vende a prazo, ou o sujeito-artista que não aceita parcelamento do mercado).

Essa obra teve três versões. A primeira, que deu a Marcos Chaves o Prêmio de Viagem ao País do XVI Salão Nacional, foi realizada em vídeo e o “cartão postal” era vivo, embora o espectador distraído pudesse nem notar. A imagem parecia fixa, mas na verdade pulsava e notava-se que, à distância, no tecido urbano, um pequeno carro passava, por exemplo. Por cima dessa imagem quase parada, corria pela tela de projeção, como um letreiro luminoso, a frase-título, e sempre de tal forma que nunca partida ao meio ou faltando qualquer palavra. O estudo desse looping foi feito com precisão matemática para que se mantivesse a integridade do enunciado durante todo o seu correr sobre a paisagem.

A segunda versão, em gravura off set, deu ao trabalho o caráter de múltiplo, como os cartões postais, vendáveis e acessíveis, como os cartões postais, com pagamento à vista. Essa segunda versão dava estruturalmente à obra um prosseguimento natural, na prática, das próprias questões que apontava. Reconduzia o readymade à cadeia de sua circulação pública, a seu status quo original, mesmo que enxertado por uma proposição estranha. E aqui cabe lembrar as garrafas de Coca-cola de Cildo Meireles, obra dos anos 70, que também voltaram ao circuito de distribuição após interferência do artista.

A última versão, em processo digital, foi exibida em painéis eletrônicos de várias cidades do Brasil, atingindo, finalmente, a distribuição em massa, e contribuindo para fechar o circuito do próprio pensamento do trabalho. Creio não ser necessário aqui relembrar o discurso de Walter Benjamim a respeito da reprodutibilidade da obra de arte na era das técnicas modernas, e das implicações sobre a perda de sua aura enquanto objeto único, autêntico e original, pensamento este que esteve na base do ato duchampiano.

Outro trabalho “fotográfico” da trajetória de Chaves, mais recente, chama-se Landescape (1999), isso mesmo, como um “E” inserido no meio da palavra. Com o comentário desse trabalho, fechamos nosso texto, e ele é providencial nesse sentido. Landescape constitui-se de três fotografias de grandes dimensões, montadas numa cabine, em perspectiva, de maneira que as duas fotos laterais se dirijam ao ponto de fuga, que é a fotografia central. De cara, precisa-se dizer que são fotos de paisagens, que são “belas” e bem realizadas tecnicamente. Aí começa a questão. O trabalho pretende provocar um curto-circuito em relação aos padrões clássicos da representação, a partir desse mesmo modelo de  representação. É aposto de forma a manter a perspectiva tradicional, mas, ao mesmo tempo, articula-se por partes isoladas, que podem ter existência própria, sendo cada parte uma “janela do mundo” por si mesma. A montagem determina a percepção cinemática do trabalho, com uma articulação semelhante à da seqüência de frames no filme, o que é uma operação moderna, e se destaca dos procedimentos clássicos. Além disso, o espectador, ao entrar na cabine, penetra fisicamente no espaço do trabalho, o que já é uma operação contemporânea. Trata-se de um nó que embaralha os diferentes espaços plásticos firmados ao longo da história, fundindo-os e separando-os simultaneamente.

A apropriação da paisagem como readymade se sustenta, e agora também as inscrições verbais já estavam ali, naquele lugar, bastando clicar com a máquina, no melhor ângulo do recorte que as colocasse na ênfase interessante. Em cada foto existe uma palavra, pertencente àquela imagem, tal como foi encontrado no real. Na foto da lateral esquerda, uma enorme extensão de céu linearmente azul, luminoso, cortado por um fio elétrico, onde se pregou uma placa amarela que diz  “Parada”. Na da lateral direita, outro céu, nublado, turbulento, onde o movimento das nuvens, desenhando uma linha quase reta, parece uma seta que aponta para outras palavras – contidas em uma placa que não foi clicada por inteiro, e que diz “Local perigoso”. No centro, a fotografia de um buraco no meio da rua, com uma cruz de madeira fincada, onde se lê “Buraco”. Essa cruz improvisada, feita por gente comum dos bairros da cidade, é uma sinalização espontânea, inocente, de alguém que quer proteger contra o perigo. É uma imagem cômica e trágica, leve e pesada, crítica e indiferente. Desperta, de dentro da sua inocência, o sentido da fatalidade. É cruz, é buraco, é morte. E a morte é o ponto de fuga da “composição”, lá onde converge nosso olhar, onde os céus nos levam, os céus que já sinalizavam o “local perigoso” e a “parada”. Os céus que tanta dificuldade causaram para os pintores naturalistas, os céus que foram, no mundo da representação ilusionista, um verdadeiro inferno. A perspectiva é o buraco, morto.

A morte é também o símbolo último da operação fotográfica. Dubois diz que a ação do cut fotográfico sobre o real, coloca o real fora do tempo vivido, “congelado na interminável duração das estátuas” (7). Ao suspender o tempo crônico, corta o que é vivo dessa duração, isolando o fragmento em um fora-de-tempo anacrônico, que é o tempo imutável das imagens. A fotografia corta o que é vivo e eterniza o morto, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, o exibe para sempre. É a imagem retirada da cadeia do tempo vivo que vai fazê-lo, ao matá-lo, permanecer. Marcos Chaves, com suas próprias palavras, intui o discurso de Philippe Dubois, quando declara que, depois de clicada a situação, “vou embora e a coisa continua lá, normalmente, como sempre esteve, mas eu me apropriei dela de alguma forma”. É o mesmo que o escritor francês pontua ao dizer que a fotografia é como “uma lembrança de parada, de congelamento, de escapada do mundo que continua sem mim” (8).

Complexo e prolífero como todo o conjunto da obra, Landescape ainda concentra no título as ramificações que comporta. O “escape” (escapar) aponta para as novas vias abertas pela arte para se esquivar da Tradição e da Morte da própria arte. Indiretamente, reporta-se à morte da pintura, especialmente aquela que se baseou na ilusão da profundidade, à morte do Belo, assim como alude ao renascimento da arte enquanto idéia. Alude e pratica. Por outro lado, mantendo o cerco intelectual do trabalho, avança por caminhos que desembocam na condição humana, condenada a viver sob o jugo da máquina, do consumo, das convenções, das ambigüidades e da morte.

 

 

Ligia Canongia

Janeiro de 2000

 

 

 

Referências bibliográficas:

 

1 – Elgar, Frank – in “Cézanne”, Editorial Verbo, 1974, Lisboa

2 – idem

3 – Cabanne, Pierre – in “Ingegnere del Tempo Perduto”, Multhipla Edizione, 1979, Milão

4 – Sypher, Wylie – in “Do Rococó ao Cubismo”, Ed. Perspectiva, 1980, São Paulo

5 – Rosenberg, Harold – in “A Nova Arte” (org. Gregory Battcock), Ed. Perpestiva, 1975, São Paulo

6 – Dubois, Philippe – in, “O Ato Fotográfico”, Ed. Papirus, Campinas

7, 8 – idem

 

 

 

 

 

Cara Leila

 

Gostaria que você passasse p/ o pessoal da revisão as seguintes observações:

 

  • as primeiras vezes em que aparece a expressão “só vendo a vista” é para manter o “a” sem crase. Na sequência do texto, isso se explica.
  • em dado momento, uso o termo “presentação” e não “apresentação”, que é o correto. Peço que mantenha assim, pois enfatize a idéia que me interessa, e é uma liberdade poética que estou fazendo.
  • todos os título foram colocados em negrito
  • as palavras estrangeiras estão em itálico
  • citações e palavras com ênfase especial, com aspas

 

Um abraço, espero que goste do texto,

Ligia