Vazio e Totalidade (Ligia Canongia)

 

Quando Marcel Duchamp propôs o ready-made, dissociou inteiramente a questão da plasticidade da noção de arte, e tornou caducas as práticas que ainda preservavam algum ideal de beleza em termos clássicos. Para ele, não era necessário o sentido da criação, em que o artista tem pleno controle sobre o fazer. Um ato de seleção era suficiente para instituir o objeto selecionado na esfera da arte; na seleção estava a “criação”, pois ali já residia a Idéia. Naquele momento, Duchamp dava à forma o caráter de acidente, desqualificando-a.

O trabalho de Marcos Chaves pertence a essa linhagem histórica, à linhagem que passou a dar ao objeto cada vez mais o valor de pensamento e menos o de forma sensível: um objeto, portanto, mais ético do que estético. Chaves certamente considera o potencial aberto pelo ready-made e sabe de seus desdobramentos na atualidade. Não está interessado no produto formal, no objeto artístico, na “esteticidade”. Construir a obra de arte pode ser, para ele, extrair um objeto comum de seu ambiente funcional, combiná-lo a outros, mudar seu contexto lógico, acrescentar palavras e outros meios vindos de fora do campo estrito da visualidade, jogar com associações mentais, com o humor e com o acaso. Esses são os seus procedimentos “estéticos”.

Marcos Chaves surpreende significados e valores imersos nas coisas vulgares, dissimulados no hábito ou na convenção. Faz deslocamentos imprevisíveis e produz assemblages em tom de paródia, destilando aí a sua aguda observação sobre o mundo, da tecnologia ao lixo. As coisas de que se apropria, em sua maioria, são produtos do consumo e do imaginário popular. Observa não apenas a estética que é dirigida às grandes massas e por elas absorvida, como as manifestações que partem naturalmente do povo, do meio urbano e do comércio do mau gosto. São esses produtos que, paradoxalmente, acentuam a força do comentário “culto” da arte e ajudam a enfatizar o tom jocoso de suas associações. O humor entra aí como uma lâmina fina a satirizar o senso comum, a uniformidade e a falta de juízo crítico. O humor intervém sobre o significado original do objeto e enxerta outro, por um movimento imprevisto, um desconcerto, quase piada. A acidez de seu humor opõe-se, na verdade, à banalidade do objeto, dando-lhe, ao contrário, originalidade. De um lado, temos uma operação que escarnece da vulgaridade e do consumo, através da apropriação dos próprios produtos que os fomentam, e, de outro, uma operação que os reintegra ao mundo do “refinamento” intelectual da arte. O trabalho sustenta-se na ambigüidade, associando movimentos opostos, fundindo dicotomias, apontando sentidos multidirecionais. Desestetizado e antiformal, por excelência, o trabalho de Marcos Chaves rejeita a “aura” da obra de arte e contamina sua “pureza” com as coisas da vida comum, substituindo o belo pela inteligência.

Lugar de sobra, concebido em 1995, pensa a idéia de “série”, como muitos de seus trabalhos, voltando à discussão da indústria e dos processos de produção mecânica. Confronta, de cara, o Brasil industrial e progressista com o Brasil miserável, propondo uma “série” de objetos mambembes, de fatura manual e precária, às vias de se indeterminarem enquanto forma. Uma série que se auto-anula como idéia mesma de “serialidade”. Em Lugar de sobra, não há uniformidade, repetição, programa, planejamento, formalidade. Cada objeto preserva um mínimo de individuação. E, de novo, o material é desestetizado ao extremo. São peças de mobiliário, banquinhos usados, velhos. Não se trata mais de um produto industrial, mas de banquinhos “arranjados” à mão, obra do “jeitinho” popular e criativo, que produz utensílios com refugos, com sobras. Mas aqui o artesanato não se eleva à categoria de produção bem acabada, nem empresta ao objeto uma “estética”. O objeto acaba por possuir o mesmo espírito da assemblage dadaísta: uma forma dissociada, feita por acumulação de pedaços, por justaposição de partes díspares, uma antiforma. Cada banquinho mantém uma individuação mínima porque, de fato, são diferentes entre si, mas a precariedade de sua construção, o aspecto surrado e a indefinição de seus contornos é tamanha que eles não retêm nosso olhar, não realçam qualidades.

Outro dado importante é que os banquinhos são colocados em exposição e podem ser utilizados pelos espectadores para se sentar. Eles substituem os bancos que existem nos museus para que o público contemple a obra. Só que eles são “a obra”, e o objeto da contemplação falta. O mundo é esse objeto. Lugar de sobra inclui a obra, o público e o resto do mundo no mesmo lugar, por isso ele é de sobra, é amplo. É de sobra também porque são muitos os banquinhos, e ocupam grande espaço. E é de sobra porque os objetos são sobras do mundo, o resto. É o lugar do refugo, do lixo, da pobreza e da carência, mas é também, paradoxalmente, o lugar da fartura. Falta e sobra ao mesmo tempo.

A série fotográfica dos Buracos, a exemplo dos banquinhos, também alveja uma direção dupla: artística e política. Marcos Chaves apropria-se das “soluções” criativas do povo, ao tramitar, brincando, na área pública da “sinalização urbana”. Dadaísta de alma, o povo brasileiro das metrópoles inventa arranjos e justaposições irônicas e hilárias para driblar o descaso público, como as assemblages espontâneas construídas para sinalizar os buracos das ruas. Chaves vê nessas “construções” verdadeiros ready-mades urbanos, prontos para serem clicados, numa apropriação rápida e eficaz dessas antiformas populares, plenas de humor. E a operação fotográfica, avesso radical da manualidade virtuose dos pré-modernos, é o instrumento perfeito para a captação necessariamente veloz desses “acidentes criativos” com que nos deparamos no dia-a-dia. O ready-made surgiu para declarar a falência do “fazer” pictórico, do exercício progressivo e lento desse fazer manual e compositivo. Na verdade, o ready-made foi o sinal da impotência do pintor na sociedade industrial, e seu aparecimento deveu-se ao declínio da pintura e à redenção da arte enquanto idéia. O métier pictórico foi impotente para enfrentar a realidade da máquina, incluindo a da máquina fotográfica.

A mesma lógica que preside o ato fotográfico governa o ato duchampiano. O ready-made, como a fotografia, suspende o objeto do contínuo de seu tempo e de seu meio original, da cadeia progressiva, evolutiva, separando uma fatia do mundo do resto do mundo. O ready-made é outra espécie de cut, que interrompe, assim como a foto, o fluxo normal de um objeto. O disparo que fundamenta a operação fotográfica é o mesmo disparo que isola, no ready-made, uma porção do mundo. E é importante sublinhar que Marcos Chaves não é fotógrafo, não pretende que as imagens fotográficas sejam “artísticas”, a foto sendo tão-somente esse recorte que assimila imediatamente a fatia do real que lhe interessa. O ready-made não precisa ser um objeto, uma coisa, ele pode ser a paisagem, uma cena de rua, algo que o artista se apropria como “já feito”. Os buracos “reais”, no perfil que assumem com as interferências populares, têm uma sobrevida fugaz, e são resultado de uma ação incisiva e satírica que só pode ser “eternizada” com a ação igualmente breve, mas eterna, do clique fotográfico. Ao disparar seu olhar sobre essas intervenções, colhê-las e torná-las obras, Marcos Chaves prolonga a duração desses acontecimentos, contrariando a sua sorte acidental. Congeladas no tempo perpétuo da fotografia, as intervenções, feitas para durar o tempo preciso até sua coleta por um caminhão de lixo, transformam-se em “monumentos” urbanos, suspensos “na interminável duração das estátuas”.

O buraco é a falta, o vazio, o lugar que nos solicita imediato preenchimento para que não nos deparemos com o fato insuportável da ausência. O buraco é ainda o desconhecido, a ameaça, o lugar da queda, do perigo e da morte. As interferências populares alertam-nos para esses temores, protegem-nos, sinalizando a iminência do desastre, e o fazem com o humor e a irreverência de quem ilude e desfaz as armadilhas da fatalidade. Reagem à morte com o humor que, no dizer de Chaves, “é uma forma de tirar a tragicidade das coisas”. O buraco ressurge, então, como espaço de criação, de vida, de pulsação, justo as qualidades que a fotografia, enquanto meio, congela, e que a arte de Marcos Chaves, como expressão da ambivalência, retém, mas vivifica. “Come into the [w]hole”!

Ligia Canongia é curadora e crítica de arte. Este texto foi produzido em ocasião da exposição realizada na Galeria Arte Futura e Companhia, Brasília, em 2002.