Alucinação à beira-mar
Alucinação à beira-mar resulta da assemblage de dois objetos casualmente adquiridos pelo artista, num mesmo dia, sem qualquer propósito prévio de reuni-los: uma velha edição do único livro publicado pelo poeta paraibano Augusto dos Anjos (1884-1912), Eu e outras poesias; e o bibelô em terracota de um menino desnudo sentado sobre uma base escura, com um livro aberto sobre suas pernas cruzadas. Faltam-lhe, no entanto, o pé direito e a cabeça, quebrados, sabe-se lá como, antes de sua aquisição por Marcos num brechó em Santa Teresa.
O boneco colocado pelo artista sobre a costura das páginas dos poemas Alucinação à beira-mar e Vandalismo determina que o sentido desse trabalho só seja apreensível no entrecruzamento entre o legível (os títulos das poesias) e o visível (um bibelô quebrado, sem pé nem cabeça).
A investigação de possibilidades semânticas que brotam na interseção das palavras e os objetos/imagens que povoam nosso cotidiano e o imaginário de Chaves não é, no entanto, uma característica restrita a este trabalho. Ela permeia toda a sua obra.
Alucinação à beira-mar é o mais antigo dentre os trabalhos de Marcos Chaves agora mostrados. Produzido em 1994, seu título, no entanto, pareceu-nos atual e adequado para esta exposição na Galeria da Casa de Cultura Laura Alvim, localizada em um dos cartões-postais mais conhecidos de nossa cidade, a praia de Ipanema. Sua situação geográfica privilegiada terminou por indicar-nos um recorte curatorial na produção de Chaves feito a partir de obras do artista que, explícita ou indiretamente, se referiam ao Rio de Janeiro.
A Alucinação à beira-mar resulta da assemblage de dois objetos casualmente adquiridos pelo artista, num mesmo dia, sem qualquer propósito prévio de reuni-los: uma velha edição do único livro publicado pelo poeta paraibano Augusto dos Anjos (1884-1912), Eu e outras poesias; e o bibelô em terracota de um menino desnudo sentado sobre uma base escura, com um livro aberto sobre suas pernas cruzadas. Faltam-lhe, no entanto, o pé direito e a cabeça, quebrados, sabe-se lá como, antes de sua aquisição por Marcos num brechó em Santa Teresa.
O boneco colocado pelo artista sobre a costura das páginas dos poemas Alucinação à beira-mar e Vandalismo determina que o sentido desse trabalho só seja apreensível no entrecruzamento entre o legível (os títulos das poesias) e o visível (um bibelô quebrado, sem pé nem cabeça).
A investigação de possibilidades semânticas que brotam na interseção das palavras e os objetos/imagens que povoam nosso cotidiano e o imaginário de Chaves não é, no entanto, uma característica restrita a este trabalho. Ela permeia toda a sua obra.
Nascido da apropriação de imagens e de objetos cotidianos encontrados pelo artista, seu trabalho desloca-se numa via alternativa à da invenção formal e à do fazer estritamente manual, característicos das linguagens convencionais da arte que sobreviveram ao modernismo (pintura, escultura, desenho e gravura). Pertence, portanto, a uma genealogia fundadora da contemporaneidade que pode ser mapeada a partir do surgimento da colagem e da assemblage, tanto cubista e surrealista, quanto dadaísta, que passaram a incorporar fragmentos de objetos reais ao retângulo ficcional do quadro. Propostas como a do ready-made (Marcel Duchamp) e a do objet trouvé surrealista terminaram por incorporar a apropriação como um método de criação e invenção visual.
No caso de Marcos Chaves, a coleta e a combinação dos objetos é fundamental. Feita em função de idéias prévias ou casualmente deflagradas por coisas encontradas nas ruas ou em brechós, essa coleta é determinante para a sua poética. Mas a apropriação objetual é somente uma faceta do método de produzir do artista. O delírio ambulatório, tal como foi definido por Hélio Oiticica, é parte fundamental da experiência visual de Marcos. Ele circula pelo Rio de Janeiro, com o olhar sempre atento a situações inesperadas, quase sempre registradas em fotografias e vídeos.
Em entrevista concedida a Ivan Cardoso para o filme HO (1979), Hélio Oiticica fala de sua relação com a rua. “Eu descobri o seguinte: a relação da rua com o que eu faço é uma coisa que eu sintetizo na idéia de ‘delírio ambulatório’. (…) Na realidade, a minha volta ao Brasil foi uma espécie de encontro místico com as ruas do Rio, um encontro místico já desmistificado. Antes nos anos 60 foi a construção da mistificação da rua, mistificação da dança, da Mangueira, agora é um processo de desmitificação, junto com a mistificação, uma coisa já vem junto da outra: então eu pego assim pedaços de asfalto da Avenida Presidente Vargas, antes de taparem o buraco do metrô, todos os pedaços do asfalto haviam sido levantados… (…) Todos os pedaços do Rio de Janeiro têm para mim um significado concreto e vivo, essa coisa que eu chamo ‘delírio concreto’ (…) Existe assim uma porção de ordem de absorção dessas coisas; com a praia também tem isso, o mar” (págs. 32 e 33 do livro A pintura depois do quadro, organizado por Luciano Figueirêdo, e publicado por Silvia Roesler Edições de Arte).
O delírio ambulatório pode ser tomado, portanto, como um método ou uma diretriz da produção visual. Consiste em recolher da paisagem urbana objetos, resíduos e imagens casualmente encontrados pelo deambulador, com o intuito de alimentar ideias e gerar novos trabalhos a partir do material coletado.
No delírio ambulatório a produção visual abandona o plano prévio que regulava a representação pictórica do mundo para nele recolher os elementos poéticos de seu trabalho, editando-os.
O artista, porém, não restringe sua ação ao delírio ambulatório e à apropriação de utensílios e de imagens. Seu método de trabalho supõe uma etapa seguinte, a da articulação do material coletado, ainda que, em certos casos, possa ter sido determinada pelo encontro inesperado de um ou mais objetos, tal como ocorreu no caso de Alucinação à beira-mar.
A conexão dos componentes das obras de Marcos é feita, sobretudo, por meio dos irônicos nexos estabelecidos entre a palavra (grafada nas próprias obras ou assimilada aos títulos dos trabalhos) e os objetos e imagens por ele achados. Chaves inventou, pois, uma sintaxe que, embora não possua regras, uma vez que seu sentido se especifica em cada trabalho, amarra e empresta sentido ao conjunto de sua produção.
Nesse sentido, a alusão recorrente do Rio de Janeiro em sua produção – foco da presente mostra – não é a manifestação de uma preferência temática, mas uma consequência do método de trabalho por ele adotado. O delírio ambulatório tem por espaço a rua e por resultado o encontro e a surpresa. É natural, portanto, que a cidade na qual o artista vive e deambula seja uma protagonista frequente de suas obras.
Nem todos os trabalhos ora mostrados exibem, porém, paisagens e cenas emblemáticas de uma cidade cuja inscrição num cenário deslumbrante vem sendo retratada preferencialmente de poucos pontos de vista. Dentre eles o Pão de Açúcar, que informalmente adquiriu o status de imagem oficial do Rio de Janeiro.
Três trabalhos da mostra tratam desse cartão postal. O primeiro é um vídeo de 1997, Eu só vendo a vista, no qual o Pão de Açúcar, tomado do alto do Mirante Dona Marta, impõe sua imobilidade pétrea à dinâmica das ruas do Rio, praticamente invisíveis devido à escala monumental da cena gravada. Os dois outros, mais recentes, são fotografias feitas entre 2008 e 2010.
Desculpe o transtorno mostra-nos uma situação na qual um andaime em montagem na Praia de Botafogo foi fotografado contra o fundo do Pão de Açúcar, sugerindo que o próprio morro está em restauro. Já Rio olímpico mostra-nos a imagem de pesos e equipamentos públicos de ginástica improvisados, em péssimo estado de conservação, tendo por fundo, outra vez, a emblemática montanha. Se pensarmos estes trabalhos de um ponto de vista semelhante ao de Hélio Oiticica, a respeito da dinâmica da deambulação, podemos tomar o vídeo de 1997 como um trabalho de mitificação do ícone maior da cidade; e as fotos que sugerem a precariedade do morro em conserto ou mostram a indigência dos equipamentos destinados ao exercício físico instalados à sua frente qual seu contraponto desmistificador.
Além desses trabalhos, dois outros também tratam de ícones da natureza carioca. Só para contrabalançar (no qual a imagem da Pedra da Gávea de perfil serve de base para um Buda, também de perfil; montanha e imagem conectam-se, aqui, por semelhança morfológica, criando uma alternativa religiosa ao teor católico do Redentor) e Bis, referência irônica aos folclóricos aplausos sem bis, ao pôr do sol em Ipanema. Em trabalhos como no vídeo Cópia / Colares (Rio) e na foto Rio 40º, a cidade pode ser claramente reconhecida graças aos títulos. Sem estes, no entanto, sua identidade não poderia ser estabelecida facilmente. Se na primeira delas o nome Rio aparece escrito na lateral do último ônibus registrado no plano sequência em que o vídeo foi gravado (a cidade é também aludida na homenagem a Raymundo Colares, que, na década de 1960, produziu a série Ônibus), na segunda, a semelhança gráfica entre o asfalto deformado pelo calor e a topografia da urbe carioca esclarece-se no contexto geral da exposição.
O Rio de Janeiro, entretanto, não se reduz à sua face icônica mais óbvia. Ele é, sobretudo o lócus de experiências afetivas e sociourbanas que não possuem o glamour de sua cara mais difundida. A sequência de fotos Conserto para banheiro é uma dessas obras. O conserto do banheiro da casa de um amigo deixou um remendo de massa junto à pia que evoca claramente o célebre Self-portrait in profile de Marcel Duchamp, feito em 1958. Nas imediações do remendo, Chaves escreveu Rose Sélavy para, em seguida, fotografá-lo numa sequência em zoom.
Alucinação à beira-mar celebra o delírio do olhar e da palavra de Marcos Chaves. Sem o Rio de Janeiro o conteúdo e a direção de seu trabalho não poderiam ser os mesmos.
Fernando Cocchiarale