Paisagens não vistas

2014
     

Exposição individual no Museu de Arte do Rio (MAR)

Curadoria Ligia Canongia

Vistas Pat Kilgore

Ligia Canongia

Os artistas dos anos 1990 abandonaram o simulacro e o caráter eminentemente ficcional e espetacular da fotografia da década precedente, e o retorno ao real foi restaurado. Com imagens do cotidiano e o interesse por objetos e cenas comuns, eles acentuaram ainda a quebra da perspectiva idealista do sublime, a reboque de releituras de Duchamp, de certo enxugamento emocional e da recuperação do debate sobre a cultura da mercadoria. Nesse espírito, começaram a se debruçar sobre as questões da cidade e da paisagem, com o desejo de interrogar a relação do homem com seu meio. Aspectos políticos imediatos, ligados à vida urbana, aos problemas de territorialidade e aos sistemas sociais passaram a ser igualmente observados.

Hereditária desses postulados, parcela considerável da obra de Marcos Chaves pode ser compreendida como um paisagismo contemporâneo, dada a imensa produção do artista voltada para a paisagem e para as cenas urbanas. Não se trata, obviamente, do paisagismo da tradição, como o das pinturas contemplativas do Renascimento e das paisagens clássicas de Poussin. Tampouco se reporta às telas românticas de Turner e Delacroix, envolvidas por percepções interiores e impulsos passionais.

O enfrentamento da paisagem se expande desde Cézanne, tornando a natureza não mais um objeto a ser contemplado, mas a razão para instaurar a unidade homem-natureza, que requer o sentido crítico do olhar e o fundamento moral da relação da sociedade com seu entorno. Com a modernidade, o surgimento das metrópoles e a expectativa das massas, a paisagem deixa de ser o lugar utópico e meditativo da era pré-industrial, passa a constituir domínio ideológico diverso de um mero espaço físico e exige algo além de visões elevadas. E é nesse sentido ético que os artistas da década de 1990 retomam o ideário da urbanidade e da natureza.

A relação de Marcos Chaves com a paisagem enfatiza a observação moral moderna; evoca aspectos culturais e políticos que as paisagens e o espaço urbano escamoteiam em suas formas imediatas de aparição. Em todo o conjunto da obra, marcadamente crítica, o artista acrescenta sentidos mordazes e ácidos à vida cotidiana, numa produção que ironiza, a um só tempo, a estética da contemplação, a mirada turística e o poder público.

Alguns pensadores, como Paul Virilio e Jean Baudrillard, tendem a considerar a cultura midiática pós-moderna, na qual a fotografia tem papel fundamental, como um poder quase comparável ao de um novo Estado absolutista. Diante da submissão da esfera pública aos meios de massa, em que o sujeito é privado de seu juízo crítico e vive em sociedades padronizadas, Virilio diz que o cidadão contemporâneo tem um novo soberano: a fotocinematografia da era digital e a teleobjetividade. Segundo o autor, a perda da empatia com o mundo real, da capacidade de perceber e compreender seus fenômenos e de se deixar tocar pelas coisas, teria provocado a substituição da imagem mental pela imagem meramente instrumental, para ele “o desastre das representações”.[i]

Ora, a função ética da obra de Marcos Chaves, que se justapõe a seus aspectos formais, atesta justamente uma atenção aguda aos subtextos das formas e ações corriqueiras, propondo, ao invés, visões críticas da realidade e do próprio papel das imagens na vida atual. Permeada pela ironia e pelo humor, a exposição Paisagens Não Vistas investiga o contexto da natureza no mundo contemporâneo, desmistificando sua lógica histórica, suas convenções e formalidade. Ademais, sabemos que, hoje, não só a fotografia contemporânea, como muitas do fotojornalismo buscam valores além da imagem instrumental: são maneiras, inclusive, de criticá-la. No domínio da arte, a foto se estabelece simultaneamente como registro e como linguagem, mas também como forma de pensar o real e a história.

As categorias e as fronteiras legadas pela tradição clássica e moderna foram conduzidas a novas ordens de linguagem e organização na era pós-moderna. A recuperação do cotidiano e da urbanidade indiciou, na fotografia contemporânea, o desejo de situar os objetos e as paisagens como inscrições políticas, mas não necessariamente engajadas com códigos explícitos de denúncia ou comprometidas com o realismo social. A retomada do gênero documental e sua simultânea renovação a partir dos anos 1990 foram estratégias lógicas e consequentes, não apenas como rebatimento aos simulacros e à teatralidade anteriores, mas também como instrumento crítico das próprias condições de representação do real.

O cunho documental da obra de Marcos Chaves não se basta na pura representação; suas fotografias e vídeos convocam o espectador a ver a imagem além de sua superfície e de sua evidência. A retomada da fotografia documental na arte supõe justamente o paradoxo entre a neutralidade do documento e a expressividade do artista; o retorno ao referencial não suprimindo o olhar e o registro autoral do sujeito. Por baixo das camadas aparentes do real objetivo, haveria sempre uma ligação subterrânea com os códigos subjetivos e poéticos. Afinal, lembrando Walter Benjamin, a câmera fala diretamente ao olho humano e “somente ela nos revela o inconsciente da visão, como a psicanálise, o inconsciente das pulsões”.[ii]

Importante ressaltar, contudo, que o olhar de Marcos Chaves se interpõe no click fotográfico sem lirismo, tomando a paisagem como um ready-made duchampiano, embora suas escolhas não compartilhem do distanciamento e da indiferença radicais do mestre francês. Ao contrário, a cena constitui um déjà-vu, mas sua seleção está inscrita num projeto poético determinado por formulações precisas de linguagem.

Marcos Chaves certamente considera a relação implícita entre o ready-made e a fotografia, uma vez que ambos se estabelecem como formas de subtrair recortes imediatos do real. Mas, seus recortes não se submetem à aleatoriedade absoluta de Duchamp, tampouco são isentos de uma ironia crítica explícita. Sua fotografia quer investigar a paisagem e a urbanidade como propulsoras de significados que se projetam além da plasticidade artística; assim como os ready-mades, são mais éticos do que estéticos, mas esclarecem sem subterfúgios a razão crítica que os orienta. Além disso, não perdem conexão com a história da arte e o mundo do conhecimento.

O artista enxerga, por exemplo, verdadeiros assemblages na linhagem de Kurt Schwitters, quando se depara com as intervenções anônimas nos buracos de rua. Ri das simulações feitas para esconder falhas em muros e calçadas, que tentam, mas não conseguem resgatar a unidade daquela superfície, e, ao mesmo tempo, vê ali parentescos com o universo da pintura moderna. Nesse projeto poético, por mais objetivo que se proclame, o eu lírico do artista nem sempre se ausenta; existem claras exceções. Na série de paisagens constituídas por partes justapostas, que revelam simultaneamente diferentes perspectivas de um mesmo lugar, Marcos Chaves parece retomar certa atmosfera romântica e pitoresca, que trai sensivelmente o princípio geral da objetividade. Essa série, ademais, discute o caráter estável do próprio meio fotográfico, buscando dotá-lo de dispositivos cinemáticos e de temporalidade.

As fotografias de Marcos Chaves, certamente, pretendem ser algo mais do que a descrição objetiva de formas e lugares e se reportam ao questionamento da imagem no seio de cidades paradoxais por excelência. A obra expõe e realça a “invisibilidade” dos desgastes urbanos, como os buracos das ruas, as gambiarras e as mazelas existentes atrás das aparências. Flagradas no fluxo anódino do cotidiano, suas fotos são inscrições da cidade como espaço de contradições, onde cenas dispersas e intervenções anônimas contribuem para compor sua identidade.

Hal Foster fala que houve um deslocamento conceitual “da realidade como efeito da representação para um real traumático”,[iii] apreendido somente no après-coup, ou seja, por meio de uma experiência ulterior à sua apreensão e já recodificado. A fotografia de Marcos Chaves, portanto, seria o retorno ao real, sua constante apropriação, mas a um real já diferido de si mesmo pela experiência do “trauma” e pelo fenômeno poético. Retomar algo, para Foster, jamais se esgota na pura repetição, pois implica voltar a alguma coisa após passar pela experiência crítica e traumática dela mesma. Não seriam, pois, retornos estritamente gratuitos e revisionistas, mas retornos com a consciência do que foi vivido e experimentado, ligados ao ato de se “reconectar” diferentemente com o mesmo.

Ao se reconectar com o universo da paisagem e da cidade, Marcos Chaves revisita simultaneamente a relação da arte com o espaço e o tempo do cotidiano e das práticas sociais, satirizando a reboque o ideário burguês e as aspirações do belo da estética tradicional. Ademais, seu trabalho expõe a desilusão com o poder, a pobreza, a ruptura dos contratos sociais e a própria insatisfação com os modelos da cultura, aspectos que também se reportam ao objeto traumático da arte contemporânea.

Sua obra volta à antiga questão dos processos de “desestetização” da arte, já enunciados desde os anos 1970, que visavam destituir o objeto artístico de seu conteúdo puramente estético, de seus rituais e de seu fetiche. Em virtude desse despojamento de valor plástico, Marcos Chaves renega os dispositivos do “bel fazer” e das formas “bem acabadas” para enfatizar a produção da arte como trabalho intelectual, inscrito no contexto de uma reflexão sobre a realidade. Livre da formalidade estética e afetada por visões vulgares, sua obra mexe profundamente com os padrões burgueses e com o mercado, em prol do que Donald Judd já chamara de “espaço verdadeiro”.

A exposição traz um conjunto vasto de trabalhos, de 1990 aos dias de hoje, realizados em fotografias, objetos e vídeos. Com ela, sublinha-se o caráter lúdico e político tão peculiar ao artista, cuja lógica transversal surpreende sentidos e valores desconcertantes nas cenas e coisas ordinárias do mundo.

[i] VIRILIO, Paul. Esperar o inesperado. Dardo, Lisboa e Santiago de Compostela, 2006.

[ii] BENJAMIN, Walter. Poésie et révolution. Paris: Denöel, 1971.

[iii] FOSTER, Hal. Le retour du réel: situation actuelle de l’avangarde. Bruxelas: La letter volée, 2005.