Próteses
O cunho documental da obra de Marcos Chaves não se basta na pura representação;
suas fotografias e vídeos convocam o espectador a ver a imagem além
de sua superfície e de sua evidência. A retomada da fotografia documental na arte
supõe justamente o paradoxo entre a neutralidade do documento e a expressivi-
dade do artista; o retorno ao referencial não suprimindo o olhar e o registro autoral
do sujeito. Por baixo das camadas aparentes do real objetivo, haveria sempre uma
ligação subterrânea com os códigos subjetivos e poéticos. Afinal, lembrando Walter
Benjamin, a câmera fala diretamente ao olho humano e “somente ela nos revela
o inconsciente da visão, como a psicanálise, o inconsciente das pulsões”.
Importante ressaltar, contudo, que o olhar de Marcos Chaves se interpõe no click
fotográfico sem lirismo, tomando a paisagem como um ready-made duchampiano,
embora suas escolhas não compartilhem do distanciamento e da indiferença radicais
do mestre francês. Ao contrário, a cena constitui um déjà-vu, mas sua seleção está
inscrita num projeto poético determinado por formulações precisas de linguagem.
Marcos Chaves certamente considera a relação implícita entre o ready-made e
a fotografia, uma vez que ambos se estabelecem como formas de subtrair recortes
imediatos do real. Mas, seus recortes não se submetem à aleatoriedade absoluta de
Duchamp, tampouco são isentos de uma ironia crítica explícita. Sua fotografia quer
investigar a paisagem e a urbanidade como propulsoras de significados que se projetam
além da plasticidade artística; assim como os ready-mades, são mais éticos do que estéticos,
mas esclarecem sem subterfúgios a razão crítica que os orienta.
Além disso, não perdem conexão com a história da arte e o mundo do conhecimento.
O artista enxerga, por exemplo, verdadeiros assemblages na linhagem de Kurt
Schwitters, quando se depara com as intervenções anônimas nos buracos de rua. Ri
das simulações feitas para esconder falhas em muros e calçadas, que tentam, mas
não conseguem resgatar a unidade daquela superfície, e, ao mesmo tempo, vê ali
parentescos com o universo da pintura moderna. Nesse projeto poético, por mais objetivo
que se proclame, o eu lírico do artista nem sempre se ausenta; existem claras
exceções. Na série de paisagens constituídas por partes justapostas, que revelam
simultaneamente diferentes perspectivas de um mesmo lugar, Marcos Chaves parece
retomar certa atmosfera romântica e pitoresca, que trai sensivelmente o princípio
geral da objetividade. Essa série, ademais, discute o caráter estável do próprio meio
fotográfico, buscando dotá-lo de dispositivos cinemáticos e de temporalidade.
As fotografias de Marcos Chaves, certamente, pretendem ser algo mais do
que a descrição objetiva de formas e lugares e se reportam ao questionamento
da imagem no seio de cidades paradoxais por excelência. A obra expõe e realça a
“invisibilidade” dos desgastes urbanos, como os buracos das ruas, as gambiarras e
as mazelas existentes atrás das aparências. Flagradas no fluxo anódino do cotidiano,
suas fotos são inscrições da cidade como espaço de contradições, onde cenas dispersas
e intervenções anônimas contribuem para compor sua identidade.
Excerto do texto Paisagens Não Vistas (2014) de Ligia Canongia.