Não falo duas vezes

1995
 

O trabalho não falo duas vezes (1996) é um exemplo de como as palavras podem assumir significados multidirecionais, e a atividade “plástica” ser apenas residual. A obra resume-se a uma placa de vidro transparente colocada a certa distância da parede. Na placa está escrito “falo duas vezes” e na parede fica, sozinho, o “não”. Esse descompasso nos planos onde os termos estão inscritos, apesar da distância ser mínima e reduzida pela transparência da placa, é fundamental, e aí reside toda a diferença. Quando olhamos o trabalho, lemos imediatamente a frase inteira e unimos as partes que estão separadas. Mas a projeção da sombra do enunciado que está na placa – “falo duas vezes” – surge na parede como um fantasma, que superpõe uma afirmação diferente, pois, ao repetir o “falo duas vezes” duas vezes, nega o enunciado inteiro original. Apresenta a afirmação como mentira, pois faz o sujeito que fala, falar duas vezes. O “não” é trazido para um plano onde ele não está, e parece que apenas na placa lemos a afirmação inteira, que é por sinal uma negativa; enquanto que o que estava apenas na placa parece ser o que está na parede, sendo essa projeção em sombra a negativa daquela afirmação. Com uma simplicidade imensa, a obra articula um nível de complexidade extraordinário. E carrega ainda outras implicações. Uma das hipóteses é a de que frases chavões, de uso desgastado, são, como já dissemos, tão readymades quanto objetos, e podem passar para o domínio do imprevisível pelo simples deslocamento de contexto, ou por alterações nas formas de sua presentação. Há ainda a referência ao “falo” como figura sexual, e esse dado não é nada desprezível na obra de Marcos Chaves, toda ela permeada pela sexualidade. Só que o “falo” não tem tanto uma conotação sexual nesse trabalho quanto a conotação do “poder”, que ele representa. E lembremos que normalmente a frase “não falo duas vezes” é proferida em situações em que alguém quer mostrar autoridade. O trabalho de Chaves tem o poder como alvo de sua ironia, e a idéia de poder pode ser desdobrada na idéia de convenção. Ora, a frase “não falo duas vezes” já se tornou tão convencional que, via de regra, quem a profere não se propõe verdadeiramente a cumpri-la. Por extensão, a convenção aparece como mentira, falsidade, artifício que encobre a veracidade das coisas. E teria então a arte a capacidade de garantir verdades ? A ambigüidade do trabalho de Marcos Chaves prolonga-se nesse campo, não poupando a si mesmo. Afinal, Picasso já dissera, em 1923, que “do ponto de vista da arte, existem somente formas que são mentiras mais ou menos convincentes”.

Ligia Canongia