Vai Passar? (Paula Braga)

 

Em janeiro de 2020, vi ao vivo, no topo do Museu de Arte do Rio (MAR), a tremulante bandeira verde e rosa de Marcos Chaves, com a frase que entrou para o meu cancioneiro de sobrevivência desde que vi a obra por fotos: vai passar.  A imagem da bandeira começou a circular nas redes sociais alguns meses depois das eleições de 2018 e me agarrei ao “vai passar” mais do que ao “ninguém larga a mão de ninguém.”

Ontem, Marcos Chaves  publicou no Instagram os dois lados de um múltiplo da bandeira. Havia um ponto de interrogação no verso do pano. Escrevi para ele. Esse ponto de interrogação já estava na obra lá no museu? Estava. Sempre teve o lado da interrogação, desde abril de 2019.

Aquela ida ao Rio foi meu último voo antes do isolamento social. Por que eu não vi o ponto de interrogação? Porque eu queria muito que o desastre passasse, sozinho, com o tempo. Percebi então que essa obra não só invoca o samba “Vai passar”, de Chico Buarque, o que já estabeleceria um campo amplo de interpretações sobre o “estandarte do sanatório geral”, como também mantém a bandeira vinculada à constatação do personagem Rieux, do livro “A Peste”, de Albert Camus, a respeito da persistência do fascismo: “o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada.”

No Brasil, a variante do bacilo já se auto-declarava a favor da morte e da tortura antes de irmos às urnas para a eleição presidencial de 2018. As centenas de milhares de mortes pela pandemia no Brasil não ocorreram por incompetência ou por loucura dos governantes. Ao contrário, são decorrência da competência em realizar o que foi anunciado como valor e prioridade, e que correspondeu ao desejo de mais da metade dos votos válidos, um desejo que estava adormecido, esperando pacientemente, nos porões psíquicos. No entanto, se o bacilo insiste em voltar, há os médicos que, como Rieux na obra de Camus, seguem cuidando, apesar dos canalhas.

Em uma noite de agosto de 2020, cobertos da cabeça aos pés com equipamentos de segurança contra infecção pelo vírus, e ao som de uma trilha com os ruídos de respiradores de UTI, orientadores de trânsito organizaram um cortejo com mais de 100 carros movendo-se em marcha à ré na Avenida Paulista. Na obra, concebida pelo Teatro da Vertigem[1] e por Nuno Ramos, e filmada por Eryk Rocha, os carros percorreram dois quilômetros e meio, até o cemitério da Consolação, onde o trumpetista Richard Fermino tocou o hino nacional brasileiro de trás para frente, nota por nota. E hastearam uma bandeira, com a reprodução de um dos desenhos da “Série Trágica” de Flávio de Carvalho, um retrato da mãe do artista em seus últimos instantes de vida.

O cortejo tinha veículos de funerárias no início e no fim da fila de carros. Creio que foi o enterro da certeza de que “vai passar.” É preciso não deixar voltar, isso sim, e começar a combater o vírus bem no início da próxima peste. A arte avisa, porque ela é feita de signos de vida. Dá para ver quando eles começam a ser atacados.

 

[1]     cf. Marcha à Ré, 2020. Disponível em https://www.teatrodavertigem.com.br/c%C3%B3pia-o-filho. Acessado em 25/01/2021.