Um amor reflexivo (Luisa Duarte)
Difícil é realizar a crítica desde dentro. Misturando-se ao objeto, diluindo as fronteiras. Pois crítica pressupõe afastamento. Como inserir um “juízo” sem deixar de pertencer, sem gerar um recuo? Instituir uma crítica que se infiltra delicadamente e, no limite, partilha do ethos daquilo que contesta, ou seja, é uma irmã desconfiada, que ama, mas olha de soslaio.
É um pouco assim que acontece o caso de amor reflexivo entre Marcos Chaves e o Rio de Janeiro, cuja mais recente formalização encontra-se na mostra “Academia”. No primeiro andar da galeria Nara Roesler nos deparamos com uma série de “esculturas”: réplicas de aparelhos destinados ao exercício físico feitas de concreto, ferro, borracha e madeira, tal como as existentes ao ar livre em praias, praças e parques da cidade. Subimos as escadas e somos cercados por diversas fotografias que têm em comum a presença do Pão de Açúcar.
Para um olhar mais apressado pode parecer que estamos diante de duas exposições diferentes, mas não é o caso. Uma complementa a outra de maneira orgânica no que toca o pensamento crítico desviante sobre o Rio. Evidentemente a academia da idade da pedra de Chaves ironiza a “academia” como lugar do saber, da razão, do pensar.
Se em 1959 o neoconcretismo dizia sim à vida em resposta a um império da razão cartesiana do concretismo, hoje vemos os ícones do culto ao corpo desidratados para que melhor possamos entender essa cidade-fetiche. O artista mira contra o regime alienante que faz o elogio inibidor do corpo saudável e belo, e traz para o primeiro plano o saber fazer rudimentar, low-tech, característico do Rio e de sua capacidade de viver na adversidade. Ou seja, existe um conhecimento edificado para além dos muros das escolas, ao ar livre, feito com brisa e maresia. A cidade aqui é acariciada e espetada, simultaneamente.
Os aparelhos que no mundo cumprem a função de ajudar no projeto por um corpo mais teso e bonito estão parados e sem presença humana alguma. A gravidade parece atuar mais forte. Um espelho duplica as esculturas/ equipamentos e a nós mesmos. Somos os “atletas” no treino reflexivo em meio a uma galeria de arte em Ipanema.
Na série “Sugar Loafer” outro clichê do Rio, o Pão de Açúcar, é subvertido. Loafer é uma tradução do francês flâneur. Chaves é isso, alguém que anda em um passo mais lento, observando as fachadas e as paisagens, na contramão da pressa, podendo assim captar e transmutar o mesmo que os nossos olhos, embotados pelo hábito, já não enxergam. O tédio torna-se surpresa, o dócil ganha uma acidez adulta. Essas fotos nos fazem ver o que é símbolo de uma aguda repetição imagética como se fosse a primeira vez. Devolve nossa cidade perdida de alguma maneira.
CARGA BEM-HUMORADA
Os dois morros ao fundo com o chuveiro duplo na frente jorrando água traz uma carga bem-humorada e erótica para uma cena banal mas emblemática desse saber fazer carioca meio sacana, meio esperto; meio precário, meio ingênuo. O Rio onde nasceu e morreu Goeldi, talvez o artista maior do Brasil na sua tradução expressiva da melancolia, é o objeto de “Academia”, mostra que diz não para o conhecimento anódino das escolas, das teorias descoladas da experiência, e sim para o saber que funde-se com a carne e a vida, visto nas entrelinhas do cotidiano, que se constrói em resposta à necessidade diária. Tudo isso possui como leme uma distância que permite enxergar a armadilha narcísica que o Rio implica. E um pé atrás quanto ao registro mental que recalca o corpo e o erotismo. A “Academia” de Marcos Chaves evoca, pela ironia, um equilíbrio tênue, sem receita ou bula, entre corpo e razão, gesto e pensamento. A cidade olímpica de 2016 é incensada e questionada, a um só tempo. Nesse gesto, valendo- se dos materiais mais simples, Marcos Chaves nos devolve uma consciência insuspeita sobre onde estamos e instaura a pergunta: para onde vamos?
Luisa Duarte