Perambulante (Luisa Duarte)
“Apertar uma colherinha entre os dedos e sentir seu latejar metálico, sua advertência suspeita. Como custa negar uma colherinha, negar uma porta, negar tudo o que o hábito lambe até dar-lhe uma suavidade satisfatória. Quanto mais simples é aceitar a fácil solicitação da colher, usá-la para mexer o café.”
Julio Cortázar, Histórias de Cronópios e de Famas.
Podemos afirmar que a bússola de sua obra é o desvio. Através da apropriação ou da intervenção, Marcos Chaves desloca significados correntes, banais, gerando a aparição de sentidos antes inauditos. Trata-se do olhar agudo que se descola do habitual, reflete e produz o novo na linguagem, tendo como motor um misto contundente de humor e ironia. A escolha por estes recursos não é casual, e sim consistente, pois os mesmos são portadores de um alto grau de potência desviante: o humor e a ironia são dispositivos que acertam o alvo pelo caminho menos óbvio.
Os trabalhos reunidos em Perambulante nos recordam uma passagem de Carlos Drummond de Andrade segundo a qual as palavras estariam todas, em um primeiro momento, em “estado de dicionário”. O que o poeta faz é retirá-las desse estado primeiro, mudo, e combiná-las de tal forma que, juntas, se tornem poesia. A exposição Perambulante pode ser vista como um único e grande movimento de articulação que retira os entes mais prosaicos da vida urbana de seu “estado de dicionário”.
Comecemos do começo, indo ao Houaiss a fim de saber o significado de perambular. Ali está: andar sem destino; vaguear. Já sobre o termo ambulante: que se locomove, anda, migra; que não tem lugar fixo, que se transporta sempre de um lugar para outro; ou aquele que não se fixa em um só lugar, como comprador ou vendedor, para exercer o seu comércio. No lugar do francês flâneur, o perambulante brasileiro, mas no fim, o mesmo andarilho do mundo. Mas ao contrário da imensa maioria dos habitantes das grandes cidades que andam apressados e corcundas, mirando incessantemente os seus celulares e, nesse mesmo lance, perdendo de vista a paisagem a sua volta, Chaves percorre as ruas de cabeça erguida e olhos a um só tempo distraídos e atentos, capaz de enxergar nas entrelinhas do cotidiano um solo fértil que pede para ser cultivado poeticamente.
Vejamos a dupla de fotografias que traz a imagem de um muro branco no qual se lê “Não Percam”; logo abaixo, o balão que deveria trazer o anúncio daquilo que está sendo prometido como imperdível encontra-se vazio. Na fotografia que forma o seu par, uma construção de ferro imensa mimetiza um boneco que segura um cartaz, tal como um outdoor de estrada mambembe. Novamente a expectativa intrínseca a esse tipo de cena é frustrada, pois o boneco encontra-se de mãos vazias, inexistindo qualquer acontecimento inédito a ser visto, comprado ou experimentado.
Essa obra sintetiza muito do procedimento característico do artista. Em uma época na qual as fotografias são reproduzidas aos bilhões, onde todos se tornam fotógrafos de imagens captadas não para serem vistas, tampouco para que anos depois se tenha uma memória daquele momento, mas sim, no mais das vezes, como fruto de uma compulsão cujo alvo é o desejo de afirmar estive aqui e se regozijar momentaneamente com os likes das redes sociais; em tempos assim, não se tornar um entediado diante do mundo, mesmo tendo seu cartão de memórias lotado, e estar apto a articular cenas díspares e aparentemente dignas da mais completa indiferença significa ser capaz de dar sentido ao mundo diariamente, sem para isso precisar se valer de grandes temas, mas sim das pequenas narrativas. As cenas ordinárias dos espaços de propaganda desativados, quando associadas pelo artista, ganham uma conotação insuspeitada, tornando-se de fato imperdíveis.
Chaves encontra seu leitmotiv antes nas ruas, sempre munido de um olhar agudo que sabe enxergar o entorno, assimilar o acaso e, assim, unir as pontas em favor de um novo e inaudito sentido.
O jogo com uma intelligentsia própria ao domínio erudito da arte encontra-se presente em inúmeras obras de Perambulante, assim como uma relação com a dimensão pictórica do que é fotografado. Seja pelo caminho do humor e da ironia, seja pela trilha formal, o que comparece initerruptamente é uma postura que nega a fácil solicitação da colher, usá-la para mexer o café. Ou seja, trata-se de saber desativar o modo automático a partir do qual lidamos com o mundo como se o mesmo tivesse um manual de instruções que devamos seguir. Esquecemos que somos nós que o escrevemos diariamente. As obras de Chaves nos tratam de lembrar essa constatação tão óbvia quanto difícil de ser assimilada. O artista cria diferentes modos de se relacionar com a realidade, afetando e se deixando afetar pelo contexto no qual está inserido, fazendo justamente dessa relação viva com o seu entorno a origem de cada um dos seus trabalhos.
Formando um conjunto generoso de fotografias e vídeos, Perambulante reafirma uma das maiores potências da obra de Chaves, qual seja, aquela que, em meio a uma época marcada pela cegueira diante do excesso de imagens, é capaz de enxergar o que contém a promessa de vitalidade e sentido no seio do cotidiano mais banal, retirando do mutismo aquilo que ainda se encontra em “estado de dicionário”. Acompanhando os versos de William Blake, Marcos Chaves sabe “Ver um mundo num grão de areia / E um céu numa flor selvagem / segurar o infinito na palma da sua mão/ E a eternidade numa hora”.
Sem jamais perder o humor.