O Castelinho do Flamengo (Glória Ferreira)

 

O Castelinho do Flamengo, com seu ar de morada de bruxas, não teria escapado, sem dúvida, ao “ciclone inteligente” desejado por Alcântara Machado para varrer o ecletismo das cidades brasileiras.  Até transformar-se em centro cultural no início dos anos 90, sua sorte, com sucessivas ocupações predatórias e beirando a demolição, é exemplar da força ideológica da tabula rasa postulada pelos modernos.  É com seu espaço, memória, colunas, anjos, diabos que dialogam as intervenções de Ana Vitória Mussi e Marcos Chaves. Para além de um diálogo com o ecletismo do chamado “estilo castelinho”, seus trabalhos evocam e interrogam as condições de relação com a história e com a tradição.

O interior dela, de Ana Vitória Mussi, conjuga interrogações sobre memória, história e imagem.  Grandes reproduções fotográficas cobrem os espaços não decorados da antiga Sala de Jantar, e diretamente com o tempo e espaço inerentes a esse dispositivo de reprodução técnica, tais como visão aproximada e ampliação.  Qualquer vestígio analógico esvaziado, é a um incessante ir e vir entre o real e as superfícies significantes que somos remetidos.  As imagens evocam elementos orgânicos, mundos interiores, e desvelam o que Walter Benjamim chamou de “inconsciente ótico”, próprio à fotografia.  Apropriações de elementos iconográficos, que por sua vez são apropriações de léxicos estilísticos, contrapõem à consciência histórica, linear, uma memória passível de ser eternamente reproduzível.

São também apropriações e deslocamentos o que constituem o trabalho de Marcos Chaves.  Dos ornamentos superpostos a ornamentos de fios de ouro ligando olhares, lágrimas, cílios, e os múltiplos outros apliques, surgem aparições que reorientam nossa percepção do espaço.  Entre os sentidos originais e as diferentes camadas de significações introduzidas, temos uma espécie de descentralização e fragmentação do que se pretendia uma unidade superior, ou seja, do ecletismo enquanto estilo, e de qualquer pretensão historicista.  Investindo na decoração, considerada da ordem do falso, do kitsch e do supérfluo.  Marcos Chaves opera no hiato invisível entre a linguagem e o visível.  E nesse intervalo, seus finos Witz aparecem qual fulgurações, nos quais o humor desestabiliza certezas.

Se o ecletismo delimita períodos e práticas históricas de associação de gramáticas estilísticas, Eclético, adjetivo do qual deriva e nomeia esta exposição, remete a uma conjunção de atos tais como incorporar, copiar, transformar, contaminar, apropriar-se e tem como origem, na Grécia, a posição filosófica de recolher o melhor das opiniões de cada escola.  De certa maneira, esta tem sido uma prática do pensamento ocidental, conciliando, por vezes, fundamentos antagônicos.  Questionadas as visões teleológicas e evolucionistas da arte, e diante da fragmentação e inexistência de metanarrativas, tem sido generalizado o processo de apropriação enquanto condição de produção artística individual.  Em Eclético, Marcos Chaves e Ana Vitória Mussi, com poéticas e trajetórias distintas, nos introduzem no confronto com a tradição e com a história, até mesmo das apropriações.

 

Glória Ferreira