MC, o manipulador dos sentidos (Miguel von Hafe Pérez)

 

Maior inimigo: o moralismo quatrocentão (de origem branca, cristã-portuguesa) – brasil paternal –o cultivo dos «bons hábitos» – a super autoconsciência – a prisão de ventre «nacional». A formação brasileira, reconheça-se, é de uma falta de carácter incrível: diarréia; quem quiser construir (ninguém mais do que eu, «ama o Brasil»!) tem que ver isso e dissecar as tripas dessa diarréia – mergulhar na merda.

Hélio Oiticica, «Brasil Diarréia», Arte Brasileira Hoje, Rio de Janeiro, 1973.

 

Constatação primeira: dos inúmeros contextos artísticos que compõem a nossa paisagem globalizada, o brasileiro é daqueles que tem mantido um diálogo mais tenso e produtivo com aquilo a que hoje em dia se convencionou apelidar de neo-vanguardas. Isto é, a partir do momento em que a arte brasileira se estabelece como sombra em fuga de um modernismo europeu e norte-americano prestes a estilhaçarem-se, ou seja, a partir da década de cinquenta, os seus protagonistas souberam claramente inscrever discursos de tal forma idiossincráticos na construção de uma pós-modernidade crítica, que hoje se torna perfeitamente impossível contextualizar as décadas de sessenta e setenta sem a sua presença. Lygia Clark, Lygia Pape, Hélio Oiticica, e os ainda activos António Dias, António Manuel, Artur Barrio, Tunga ou Cildo Meireles são nomes que contribuíram para desenhar uma cartografia de expansão conceptual do objecto, de inscrição das práticas artísticas em contextos densos, polimórficos e socialmente ricos.

Constatação segunda: este património fulgurante, em contínuo aprofundamento e criando ondas de choque à medida que vai ganhando visibilidade – em Portugal, por exemplo, entre 1993 e a actualidade tivemos a oportunidade de ver excelentes exposições retrospectivas e/ou antológicas de todos os nomes anteriormente referidos à excepção de Tunga -, tem vindo a ser acompanhado por uma geração mais recente que vai erigir a partir dessa plataforma de influência as respectivas práticas na consciência plena da sua singularidade. Não que a definição do «brasileiro» na arte brasileira seja assunto de fácil discernimento ou de obrigatoriedade valorativa: na verdade, deve ser profundamente irritante para um autor que se sinta filiado a um universo estético distante das pseudo-prerrogativas desse «tropicalismo» inscrever-se num sistema que criou de si mesmo uma imagem de marca tão forte. Porém, aquilo que me parece evidente, é que autores como Jarbas Lopes, Marepe, Cabelo, Fernanda Gomes, Laura Lima ou Lívia Flores, entre muitos outros, estão a reinventar na actualidade modos de olhar o contexto específico em que se inscrevem, onde uma forte propensão para discursos que atravessam as questões mais relevantes da contemporaneidade se alia a uma omnipresente e sensual objectualidade.

Constatação terceira: Marcos Chaves é um dos autores que se movimenta nesse território. As suas deambulações criativas, tal como o flâneur,  ignoram qualquer tipo de ortodoxia ou pré-determinações, ainda que tenham privilegiado nestes últimos anos o vídeo, a instalação e a fotografia. O corpo, seu ou do espectador, é um elemento central em peças nas quais revela igualmente uma aguda consciência da linguagem enquanto meio de curto-circuitar interpretações lineares, e da imagem como reverso de si própria, isto é, da imagem como estrutura complexa que se define a partir de camadas de significação eventualmente contraditórias.

A exposição que agora se apresenta consiste na série fotográfica intitulada “Eclético”. Aqui, Marcos Chaves parte de imagens de elementos figurativos de decoração arquitectónica, para operar intervenções relativamente discretas, mas profundamente desviantes do contexto de apreensão inicial. Tal como o mais fervoroso adepto da fisiognomonia,  o artista parece fazer discorrer as suas intervenções mediante aquilo que estas figuras lhe foram sugerindo numa primeira observação.

Assim, as caras femininas que emanam uma certa languidez e laivos de introspecção, sujeitaram-se a acrescentos ou maquilhagens que tanto lhes podem acentuar esse estado de perturbante ataraxia, como atirá-las para um contexto radicalmente distante: de personagens seráficas, passam a galdérias chocantes, e onde antes poderíamos imaginar o murmurar de coros celestiais, passamos a fantasiar sobre Lieder em bordéis voluptuosos.

Nas representações masculinas, onde já predominava uma imagem satírica, enfatizam-se traços de lascívia mediante a inscrição de dentes de ouro naqueles sorrisos pérfidos. O desvio mais significativo acontece na imagem do anjinho com as nádegas ruborizadas e a mascarilha. De personagem deleitável, pleno de inocência e candura, fica transformado em vítima – será? –  intimidante, personagem num jogo que nos escapa ou que nem sequer queremos assimilar.

Deste conjunto de imagens perpassa, igualmente, um peculiar sentido de tragicomédia, que me parece transponível para um outro registo interpretativo: este modo “irresponsável” como o artista se apropria de um determinado património cultural indicia uma tomada de posição sobre a identidade histórica de uma nação. Ou seja, a des-hierarquização de um determinado segmento da cultura e de determinados valores que dela emanam – associáveis a uma tradição cultural ocidental e cristã- , fazem parte da construção de identidades próprias e do “mergulho na merda” que Oiticica reclamava.  Este processo ancora-se aqui numa estratégia onde o humor impera; contudo, o projecto afirma-se mais decisivamente na sua dimensão crítica, onde o passado e o presente colidem num plano de imagem que é sempre mais do que a soma dos dois. Marcos Chaves atinge, deste modo, aquele que é um dos objectivos mais produtivos da criação artística contemporânea, que é o de nos devolver imagens que saibam interpelar directamente o espectador nas suas convicções, nas suas expectativas e no modo como ele se posiciona no mundo. Sem qualquer tipo de moralismo adjacente, estes trabalhos ficam gravados na nossa memória como aquelas questões que de forma constante e cíclica nos inquietam precisamente porque revelam uma singular espessura existencial.

Miguel von Hafe Pérez