Logradouro (Ligia Canongia)

 

O trabalho de Marcos Chaves tem se desenvolvido no sentido de construir uma nova ética para o mundo das formas. Fazer com que o universo da arte não se restrinja mais à pura sensibilidade, nem se esgote em procedimentos estritamente estéticos, mas acrescente às assim chamadas “formas plásticas” um pensamento capaz de especular sobre o sentido do mundo, sua lógica, suas convenções e seus absurdos.

Apropriando-se de objetos banais, dos códigos e do consumo das grandes massas, e ainda da arquitetura e da cena urbana, o artista parte do déjà-vu, das coisas e dos sinais já assimilados pela convenção e pelo hábito, para neles injetar significações outras, surpreendentes e inesperadas. Afinal, a arte sempre foi o lugar da criação do novo, mas a novidade pode estar no simples deslocamento do lugar ou do sentido original das coisas, operação que os dadaístas inauguraram e Duchamp radicalizou. Marcos Chaves persegue portanto o filão desses desvios, como formas de intervir na ordem funcional ou convencional dos objetos e dos comportamentos. Com interferências irônicas e plenas de humor, o artista desestabiliza o espectador, retirando-lhe o chão daquilo que acreditava conhecer e dominar, expondo-lhe um outro lado, talvez o avesso, dos objetos, das formas e das matérias que pareciam vulgares.

Essa é a operação da obra Logradouro. Chaves empresta função “artística” e dá volumetria e monumentalidade a uma matéria ordinária e planar, como as faixas pretas e amarelas usadas na sinalização urbana. E ainda, ao senso de orientação e ordenamento que essas faixas possuem no complexo viário, o artista contrapõe o sentido da desorientação e da turbulência visual, indeterminando os limites originais do espaço e retirando do espectador qualquer ponto de horizonte e equilíbrio. Sem referência espacial, lançado ao centro de uma rede de linhas que se emaranham e avançam até o ápice de redemoinhos que constituem sua terra e seu céu, o espectador encontra no desequilíbrio e na vertigem o estranhamento de seu próprio “lugar” no mundo, agora despido das regras e dos sinais que convencionam o nosso mover. Mas, o espantoso é que, apesar desse sentido desestabilizador, a obra tem como princípio o traçar construtivo das linhas e das cores, seguindo evoluções que, ao menos a priori, partiam de coordenadas precisas e geométricas, o que, na verdade, constitui o seu paradoxo. Logradouro é uma torção em nossa sensação de segurança e estabilidade; é uma torção na idéia de um lugar/ abrigo interior, protegido do mundo lá fora, pois que a galeria se torna, ela mesma, uma continuidade desse mundo, o exterior; Logradouro é também um desvio das normas de funcionamento coletivo, orientado por convenções que pretendem regular nossos movimentos e, por último, a obra é ainda uma torção na precisão e na ordem da arte construtiva, pilar da nossa tradição moderna.

Logradouro é velocidade pura, é espaço quase tempo: espaço insubordinado que não chega a constituir lugar, tempo ensandecido que corre sem esperar que tomemos consciência de onde estamos.

Ligia Canongia