I only have eyes for you (Luisa Duarte)

 

O tempo por vir

O humor e a ironia acertam o alvo pelo caminho menos óbvio na mostra ‘I only have eyes for you’ que o artista Marcos Chaves assina na Fundação Eva Klabin

Começo esse texto recordando — com as diferenças que a memória propiciam— algumas linhas já escritas por mim mesma sobre o trabalho de Marcos Chaves: Podemos afirmar que a bússola de sua obra é o desvio. Através da apropriação ou da intervenção, Chaves desloca significados correntes, banais, gerando a aparição de sentidos antes inauditos. Trata-se do olhar agudo que se descola do habitual, reflete e produz o novo na linguagem, tendo como motor um misto contundente de humor e ironia. A escolha por estes recursos não é casual, e sim consistente, pois os mesmos são portadores de um alto grau de potência desviante: o humor e a ironia são dispositivos que acertam o alvo pelo caminho menos óbvio.

Todos estes aspectos do trabalho de Chaves estão presentes na mostra “I only have eyes for you”, em cartaz na Fundação Eva Klabin, curada por Marcio Doctors. A exposição integra o “Projeto Respiração”, que desde 2004 convida artistas para intervirem na casa onde morou EK (1903-1991), mantida até hoje com o mobiliário e parte de sua coleção que conta com 50 anos de história da arte.

Logo no hall de entrada, uma primeira obra de Chaves surge camuflada. É preciso atenção para notar os tapetes feitos a partir de réplicas de detalhes de tecidos da coleção, pois a primeira impressão que temos é que eles poderiam ter estado ali desde sempre. “Zoom” vai até o detalhe mais imperceptível e retira dali um simulacro de carne, lente de aumento que revela sulcos, camadas escondidas, cicatrizes, cortes sobre uma pele vermelha. Algo de humano, vivo, infiltra-se na casa/museu.

Instaurar índices de vida, espessura, dar a ver hemorragia do tempo que corre em um local marcado pela cristalização da memória de alguém que se foi é o cerne de “I only have eyes for you”. Exemplo disso encontra-se no contundente e belo “Cinema lavado”, onde Chaves projeta imagens de paisagens naturais do Rio, sobre a Sala Renascença da casa. Ou seja, uma iconografia tropical, barroca e imprevisível modifica o ambiente cristalizado, de cunho europeu, da FEK. Assim, o tempo por vir passa a agir onde somente o passado dava as cartas.

 

CÚMPLICE SECRETA

O humor rascante, típico da produção do artista, comparece na obra sonora “Cartoon soundtrack”. Em meio a uma sala de jantar original, que na sua vontade de “perfeição” causa agonia, escutamos sons de copos quebrando, líquidos sendo derramados. E, sutilmente, por debaixo de uma cortina ao redor da mesa, vê-se as pontas de um par de sapatos que foi de Eva Klabin, como se ela estivesse escondida ali, a escutar a desordem feita por um intruso. Espécie de cúmplice secreta de uma reversão da “casa exemplar”, sintoma de uma morte dentro da vida, pois esta sempre comporta a desordem.

Chegamos ao quarto de dormir, todo apagado, e vemos somente um foco de luz nos olhos de um homem pintado por Tintoretto.Temos a cama, o olhar que nos escrutina, e o som, emvolume baixo, correto, aquele do voyeur que não busca chamar atenção, da balada “I only have eyes for you”. O agenciamento é múltiplo aqui. Imaginamos Eva em sua cama como foco do olhar, bem como somos nós completamente capturados

por este. Envolvendo tudo, existe a mirada curiosa diante da face privada de EK. Olhamos e somos olhados, e vemos a nós mesmos no mesmo lance. Encontra- se instaurado um registro pop em meio ao que há de mais clássico, fazendo com que os dois rimem no lugar de brigarem. Mais ainda, a mostra como um todo tem a coragem de imprimir uma voltagem vital em um espaço solene, e o faz com a mão certa — tendo como diapasão a delicadeza. Criar tal dispositivo é a grandeza da proposição de Chaves. Vitalizar, lançar mares e águas — vida — em meio a um território fantasmático, marcado pela preservação do mesmo, são desejos que parecem mover “I have only eyes for you” — título em si mesmo sedutor.

Exposição que reúne o melhor do humor agudo, peculiar ao artista, aliado à dose ímpar de humanidade e sutileza que enriquece a obra como um todo. Formando assim um par que nos toca por inteiro, corpo e mente ativados enquanto toca Art Garfunkel. Rimos baixo com lágrimas no rosto.