Escultura plural (Ligia Canongia)

 

Falar do plural em um domínio – a Arte – onde sempre se buscou o singular, ainda é hoje, para muitos, uma espécie de sacrilégio.

Apesar de já termos em curso há quase meio século aquilo que denominamos “arte contemporânea”, a resistência os suas especificidades ainda é notória. Sem dúvida, a era moderna criou as condições para a expansão do conceito de “objeto artístico”, fez os principais rompimentos, lançou as questões que tiraram esse objeto do domínio passivo da contemplação. Mas a crítica modernista insistiu em pontuar uma essência na modernidade e ele coincidiria justamente com a busca da arte por sua autonomia, por um espaço disciplinar exclusivo.

Clement Greenberg salientou a importância do modernismo ao pensar a arte como uma disciplina com métodos próprios, como um campo de competência especifico, operando com aquilo “que a natureza de seu meio de expressão tinha de único”. Nesse sentido, tudo o que pudesse vir de outras esferas, de outras artes, deveria ser eliminado.

Se tal autonomia, se tal clareza de meios, se tal auto-referência foi
essencial para o desenvolvimento da arte moderna, se contribuiu para dar à arte o estatuto de uma prática e de um pensamento específico, se contribuiu enfim para repropor a obra de arte como expressão de um domínio particular, ciente de seus métodos e seus limites, essa mesma autonomia seria, mais adiante, o ponto de discussão da pós-modernidade, o centro da polêmica do arte contemporânea.

Para Robert Smithson, por exemplo, que ajudou inclusive a instituir a categoria de “pós-modernismo”, a separação entre as diversas artes, entre as diversas esferas de percepção e interpretação do real, teria sido exatamente o erro da crítica modernista.

Não estamos mais em um momento de busca de singularidade, de unicidade, de distinção. Ao contrário, o objeto artístico é agora um objeto plural, multi-direcional, contaminado. E suas raízes, por certo, remontam à morfologia fragmentado e dissociada do sistema dadaísta, em seu esforço por liberar a arte da ideia de uma disciplina ou de um programa estético.

Já interessava naquele momento provocar um distúrbio: recusar o próprio “valor” de arte ao objeto e lançá-lo direto sobre a contingência do presente e a imediatez do experiência vivida.

O objeto aleatório, deslocado, banal e irreverente do mundo Dada detona uma transformação radical, intervém agudamente sobre a noção de “pureza” dos meios artísticos.

A arte contemporânea surge para propor finalmente e de forma definitiva a perda da “identidade” linguística; uma identidade que fora tão almejada pelo pensamento moderno. A linguagem do era contemporânea é a linguagem do contágio, da con-fusão; é uma inter-lingua que se referenda sobre a pulverização do real, absorvendo diversas expressões da cultura e diferentes compos do conhecimento.

As fontes de informação do produto artístico podem vir tanto da cultura industrial e tecnológica quanto de condições primitivas, de lugares e matérias naturais e técnicas artesanais. A obra contemporânea serve de vetor a migrações constantes e transformações repentinas. Passa-se de um lugar a outro, do campo à cidade, da galeria às ruas; passa-se de um estado físico da matéria a outro; vai-se da tradição à contra-cultura.

A exposição ESCULTURA PLURAL quer, ainda, manifestar esse espírito migrante, múltiplo e transitivo do produção atual. Os trabalhos aqui apresentados têm referências históricas atomizadas, mesclam materiais naturais e industriais, utilizam-se da tecnologia e da manualidade, definem contornos formais precisos ou realizam “assemblages”, enfatizam ora o caráter orgânico ora o caráter caótico das formas.

Mas todas as instalações e objetos estão rigorosamente incorporados à trama lógica de cada obra, ò organicidade do conjunto de seus trabalhos, preservadas as estruturas e processos que cada artista vem explorando como linguagem, ao longo de suas carreiras.

Durante muito tempo, o trabalho de BARRÃO foi lido sob o ponto-de-vista Pop, por ter construído objetos a partir de apropriações do grande consumo popular. Televisões, geladeiras, liquidificadores,
toda a parafernália eletrônica de uso doméstico passou pela “reciclagem” irônica do artista. Não era tanto, talvez, a crítica ao racionalismo da técnica ou ao consumo burguês o que interessava, mas a irreverência lúdica de deslocar esses objetos para o espaço livre do imaginação. A acidez crítica das apropriações dadaístas e a neutralidade das imagens Pop eram então substituídas por um outro tipo de”assemblage”, mais engenhoso e fantasmático, mais ingênuo até, entendendo-se o ingenuidade como um potencial de singeleza e espontaneidade positivo.
Hoje vemos que o interesse, o verdadeiro centro da questão era mais o mundo da máquina, do engenho, do movimento mecânico, do que propriamente a imagem pop ou kitsch de que se apropriava. O trabalho foi se depurando até chegar, “tout court”, ao cinetismo puro, ao polo exclusivo do seu fascínio, que é a possibilidade da imagem se mover, se transformar, se estruturar mesmo, a partir de um mecanismo motor.
No trabalho dessa exposição, BARRÃO suga a água do mar que contorna o Museu através de uma bomba, desenha o percurso dessa água pela galeria, fazendo-a passar através de uma mangueira, até devolvê-la ao mar por uma janela. Estão em jogo aí várias relações: o diálogo entre arte e natureza; a possibilidade de interligar o espaço interno ao externo; a tentativa de se “apropriar” da própria natureza
como um “ready-made”; o esforço em re-criar a realidade circundante como ficção.

A idéia da transformação é radical na obra de CARLA GUAGLIARDI, fazendo de seu trabalho um organismo vivo que se altera, visual e fisicamente, através do tempo. A água tem sido o elemento fundamental de suas operações, com sua qualidade líquida e plasmável. É ela que produz as alterações físicas aparentes, processando a forma de maneira permanente, com perturbações altamente voláteis, embora concretamente perceptíveis. O corpo da obra é um corpo, portanto, entregue à ação do tempo, em eterno devir, um corpo mutante e vivo que faz surgir uma nova face a cada etapa de sua transformação. A idéia de processo, de mutação constante, de uma aparência volúvel em contínuo devir
ocorre organicamente, no interior mesmo do trabalho.

No trabalho que a artista apresenta nesta exposição, a própria arquitetura do espaço absorve esse condição instável. Ocupando os vãos entre as janelas, longos sacos de plástico branco, com água em
seu interior, pendem da parede e derramam seu peso no chão. Ora mais perto da parede, ora mais afastados, essas peças propõem um movimento ondulado que se opõe ao desenho ritmado das janelas.
Para CARLA GUAGLIARDI, que em grande parte de seu trabalho pretende tornar o tempo um dado de visibilidade palpável, aqui interessa tornar o espaço um dado formal flutuante.

O mundo de EDUARDO COIMBRA é uma espécie de “engenharia do sonho”. Desde o início de seu trabalho, o artista tem posto seus conhecimentos de eletrônica a serviço de construções ficcionais e insólitas, apenas referendadas ou acionadas por dispositivos elétricos e luminosos. Seu objetivo é tirar das imagens e das matérias “reais” o seu lado absurdo. incongruente. Ancorado pelo universo de Magritte, Eduardo Coimbra, tal como o mestre, cria relações implausíveis entre coisas plausíveis, traz o estranhamento para junto dos objetos usuais, modificando apenas os meios, os contextos de sua “presentação”. Através de associações inesperadas, torna monstruoso o que é familiar, sem contudo
deixar que perca o seu realismo. A atmosfera onírica é enfatizada pela sedução da luz e dos elementos motores de que faz uso constantemente, mas, antes de tudo, ela é fruto desse agenciamento fortuito de imagens e coisas deslocadas do seu habitat normal. Tudo ali é dado a ver com muita clareza e precisão, mas sempre com o intuito de transbordar seus próprios limites e evocar o invisível, o sonhado. Montes de terra escura e caixas de luz reproduzindo o desenho do céu. O que é “real”, o que é “irreal”?
Não teria essa “paisagem”, essa “representação de paisagem”, a mesma incongruência magritteana?
Não seria ela apenas imagem?

Algumas questões são constantes desde o início da carreira de ERNESTO NETO: problemas de peso e resistência dos materiais, corpos com elasticidade que se sustentam sob pressão, organismos tratados como fluxo permanente de transformação. No final dos anos 80, Neto produziu a série dos “sacos de meia de seda”, recheados de bolinhas de chumbo, que introduziram de maneira mais marcante no trabalho o caráter da sensualidade.
Manuseáveis, eróticos e fluídos, esses objetos masculinos/femiminos prolongavam-se no espaço, em estados móveis e aleatórios, como corpos ativos que distendessem sua “pele”
Na época, o artista falou desses objetos como forma de sentir sua “própria pele” no trabalho, come se eles, ao se reproduzirem e se multiplicarem, fossem uma extensão sua”pedaços de mim que proliferam”.
Agora e artista vem optando por declarar, de forma evidente, a sua presença dentro do obra. Moldes de chumbo ou de gesso, reproduzindo e cabeça ou as mãos do artista, vêm trazendo para a próprio estrutura do trabalho esses “pedaços de mim”. A ideia é evidenciar os rastros do sujeito na construção de seu objeto, afirmar o presença das mãos e da mente que o fabricaram, tal qual os dedos de Rodin sobre o bronze, ao imprimir e declarar o processo do esculpir.
No trabalho que apresenta em ESCULTURA PLURAL, ERNESTO NETO traça um desenho no espaço. Ainda é a elasticidade e a resistência da matéria que estão em jogo, mas também a afirmação de que o suporte da linha, desse desenho, estão em “suas mãos”

Assim como o “ready-made” de Duchamp, o trabalho de MARCOS CHAVES persegue o caráter disjuntivo das coisas do mundo, ao serem dissociados do seu contexto e função originais. Como “gags” visuais, seus objetos querem interferir sobre a ordem institucional, alterando o universo da convenção através do humor e do deslocamento imprevisível. Construindo “assemblages” com o tom de paródias, o artista destila aí a sua observação ácida sobre o mundo que o cerca, dos produtos tecnológicos à “indústria”
cultural. Qualquer achado casual – do lixo ao livro, dos plásticos às palavras – pode servir de “suporte” a suas construções, sempre articuladas por uma inteligência altamente corrosiva.
O trabalho que nos apresenta agora foi realizado nas praias de Morro de São Paulo. 0 artista já havia observado que, com a maré baixa, a grande extensão de areia deixada a descoberto revelava um
quantidade incrível de refugos plásticos ali enterrados. O trabalho foi então fotografá-los, recolher esses sacos e costurar o registro fotográfico dentro deles mesmos, levando-os para o espaço do Museu. Vários níveis de leitura podem ser alçados simultaneamente: a questão do lixo industrial como suporte para o espaço da cultura; a relação Cultura/Natureza e Arte/Industria, a indagação sobre as
fronteiras entre a indústria do consumo e a indústria cultural. o provocação sobre a ideia da auro e do fetiche do objeto de arte; a produção de uma imagem a partir de si mesma, em metalinguagem os plásticos como molduras das fotos deles mesmos.

A relação de TATIANA GRINBERG com a escultura vem se dando de uma forma quase “anti-escultórica”, na medida em que seus objetos buscam a imaterialidade, exaltam a presença do desenho, das linhas, que delimitam o espaço com matérias tênues, líquidas e transparentes. A baixíssima densidade volumétrica desses objetos e o uso regular de planos, quer de vidro, quer de espelho, fazem com que o trabalho seja quase só superfície. Poças de água, poças de espelho, poças de silicone, a utilização frequente de materiais reflexivos ou líquidos vêm justo falar das propriedades moventes e fluidas que interessam ao trabalho como evocação de um tempo que ali escoa e circula. Gestos que se repetem, espirais traçadas
sobre planos, transparências que se desdobram continuamente no espaço, são todos elementos recorrentes que afirmam a idéia do vazio e do tempo como uma não-permanência, um eterno fluir.
Assim, os objetos resvalam, fogem à visibilidade plena, escapam na tangência frágil de seus contornos e se desmaterializam.
No trabalho dessa exposição, a artista reforça a idéia da repetição e do movimento como uma continuidade absoluta no tempo.
A série dos vidrinhos de remédio tensionados na linha de nylon indica um movimento de entrada e saída da linha pelos vidros como se tal gesto supusesse um ritmo contínuo “ad infinitum”. E mais uma vez é o material transparente o escolhido. Nele, enquanto se vê o que está refletido, não se vê o trabalho propriamente dito. E o que está refletido também se esvai, se move e some e jamais chega a constituir algo que “pertença” ao objeto.
O não-conter, o não-pertencer, o não-permanecer são conceitos caros à obra dessa artista, que procura afirmar o espaço como um campo aberto e ambíquo, onde tudo pode se tornar visível e invisível
em um limite tênue e fugidio.