Como a primeira vez (Moacir dos Anjos)
Em trabalho feito ainda em 1997, Marcos Chaves apresentou fotografia colorida de conhecida paisagem do Rio de Janeiro – o Pão-de-Açúcar observado do mirante Santa Marta, imagem largamente veiculada em cartões-postais – sobre a qual apunha a frase eu só vendo a vista, escrita em letras brancas no interior de tarja preta. Condensava, de modo assim tão simples, um dos mais distintivos traços de sua obra: sua capacidade de olhar o mundo por meio de humor atento e ácido e de, por tal procedimento, desalojar da percepção rotinas e hábitos que embotam o conhecimento de algo que não se conhece ainda. Ao afirmar que a ele não interessa vender sua cidade – mas tão somente disseminar, por meio do sistema de difusão da arte, a sua exuberante paisagem –, denuncia, subliminarmente, a ação corrupta e predadora de outros, que gradualmente destroem, nela, a possibilidade do convívio em festa ou sossego. Várias outras vezes, desde então, o artista tem afirmado o desejo de enxergar o entorno vivido de formas diversas, valendo-se, para tanto, da subversão de pontos de vista consagrados, sejam eles físicos, culturais ou políticos. E o fato de haver outros sentidos, que não o aqui apontado, igualmente possíveis para esse trabalho, só reforça a vontade, nele implícita, de evocar a multiplicidade de olhares.
A apropriação de objetos, imagens e estratégias pertencentes ao repertório da vida urbana e cotidiana não só integra como funda o trabalho de Marcos Chaves. Em ocasiões, se atém a fotografar o que já está em volta e, somente por o apresentar de outro modo que não o usual, desvela significados que o olhar comum não mais discerne, anestesiado que está pelo excesso de informações que o tempo todo acolhe. Na série Buracos, por exemplo, registra formas de sinalização de buracos de rua criadas por moradores anônimos de cidades brasileiras, levados a tanto pela descrença na capacidade de o poder público sanar tão básica falta. Ao apresentar, em fotografias, essas construções feitas de detritos urbanos diversos, o artista as inscreve, entretanto, em um campo de significação visual que lhes confere, além da potência descritiva de um fato social, um valor estético já acordado. Em outro conjunto de fotografias, Marcos Chaves constrói e oferece um ponto de vista idiossincrático de ornamentos estatuários que reproduzem, sob códigos construtivos ecléticos, corpos humanos ou suas partes. Antes de os recriar em imagens, porém – e de modo distinto da série Buracos –, intervém em tais objetos e acentua a maneira irônica e singular com que os enxerga, valendo-se, para isso, de maquiagem e adendos diversos, tais como cílios postiços, máscaras e próteses dentárias. Em vez de paralisar o fluxo da vida, a fotografia opera, aqui, como registro da dinâmica efêmera que o artista concede a uma forma inerte de representar o mundo esculpido em pedra.
Abrindo mão do recurso do registro fotográfico, Marcos Chaves faz uso, em trabalhos pertencentes à série Logradouro, da fita plástica feita de listas pretas e amarelas utilizada para sinalizar e ordenar o trânsito humano em ambientes públicos. Fixando-a sobre paredes e pisos segundo a percepção que tem de um lugar, cria ambientes densos que surpreendem e confundem a vista do visitante, desfazendo o entendimento convencional de espaços (em termos simbólicos e físicos) e sugerindo que é possível percebê-los de maneiras diversas. Em uma dessas instalações, conduz a fita em linha reta pelo piso de uma sala até o ponto em que duas de suas paredes adjacentes se encontram e formam um ângulo reto. A partir desse lugar preciso, desfaz a fita em curtos segmentos independentes – uns pretos, outros amarelos – que, distribuídos e colados sobre as duas paredes, desenham nelas a imagem de uma espiral que virtualmente anula, ao olhar distante, a concavidade factual que aquelas formam. Valendo-se de estratégia e de meio expressivo distintos, o artista reafirma, nesses trabalhos, sua crença de que o mundo pode ser observado e entendido a partir de pontos de vista múltiplos, ou que nada é estável o suficiente para não estimular sentidos e mente de diferentes modos.
É em busca desses estímulos que Marcos Chaves não só deambula por ruas como também freqüenta feiras de objetos usados, descartados por seus proprietários por supostamente não lhes terem mais serventia. Por meio de fotografias que registram a localização específica de badulaques quaisquer dispostos no chão ou em tabuleiros, exercita o poder que um ponto de vista qualquer tem de eleger e conferir significados àquilo que, por desatenção ou desinteresse, pode não ser sequer notado por outros. E aos sentidos que descobre e aponta associa, invariavelmente, o riso da surpresa. Não por acaso, escolhe e captura, em uma dessas visitas, a imagem de um rádio feito de linhas retas bem ao lado da reprodução, menor e em gesso, de uma igreja barroca, conferindo àquele a idéia de um edifício modernista gigantesco. Também reveladora das relações sempre novas que busca em um repertório comum de coisas são as imagens fotografadas de um Buda que serve de suporte a um par de óculos escuros ou de um Batman sobre o qual foi posta uma pequena rede de arame, imobilizando-o para além de seus extraordinários poderes. São escolhas que exemplificam a potência cognitiva que há em enxergar com atenção e afeto mesmo as coisas miúdas e toscas.
Tomando individualmente de vários desses objetos banais achados em feiras, o artista examina, com curiosidade e interesse, as inúmeras perspectivas que oferecem ao olho. Uma vez mais através da fotografia, Marcos Chaves imobiliza apenas, contudo, a visada capaz de subverter o entendimento canônico de cada um deles. A imagem de um santo estendendo a mão aos fiéis pode, por meio de tão simples procedimento, parecer querer, ao contrário, afastá-los a todo preço. Da mesma forma que a imagem de um cão ganha feições demasiado humanas e sérias quando fotografada de um ângulo preciso. Estratégia que também torna, em outro exemplo possível, o inocente olhar de um patinho um convite à aproximação erótica e que, em outras situações, torna mesmo difícil discernir o que são, afinal, os objetos registrados dos pontos de vista escolhidos pelo artista. Simulando o ambiente ruidoso em que convivem e se entrechocam o que está no mundo, Marcos Chaves aproxima, em outro conjunto de fotografias, objetos distintos em natureza e uso, tornando obsoleta sua classificação rígida na ordem das coisas. Assim como uma folha comprida vira o chapéu de um saci-pererê, um cacho de bananas pode se transformar no cocar de um índio ou uma geleira no casulo de um esqueleto. Ao artista interessa, sobretudo, a disponibilidade para ver o que é dado a todos – a vida ordinária – como se fosse sempre a primeira vez.
Moacir dos Anjos