Evento (Luisa Duarte)

 

Ainda na calçada já é possível ver que algo está for a de lugar no Palácio da Aclamação, local da exposição “Evento”, do artista Marcos Chaves, sob curadoria de Daniel Rangel. O grande hall de entrada se transformou numa espécie de cena atravessada pelo absurdo. Diversos móveis do lugar – mesas, cadeiras, camas, cristaleiras, etc. – foram suspensos desde o teto, criando uma paisagem surpreendente e insuspeitada. O Palácio de arquitetura eclético, datado de 1921, em tudo conflita com o entorno da cidade de Salvador. Desmanchar aquela ordem for a do tempo é a premissa dessa mostra.

Sem utilizar algo que já não estivesse ali, Chaves estabeleceu uma relação fina com a equipe de conservação do Palácio, condição para conseguir literalmente revirar de ponta a cabeça o mobiliário centenário. Com uma entrada principal e outra ao fundo que dá para um jardim, a brisa típica da cidade circula pelo hall fazendo com que os móveis se movimentem sutilmente sobre as nossas cabeças.

Mas o hall é somente uma parte da narrativa de “Evento”. Caminhando nos deparamos com a sala de banquetes, habitualmente repleta de um mobiliário pesado e ordenado. Chaves desarranjou toda a ordem, fazendo da grande sala, antes fria, um turbilhão caótico no qual cadeiras e mesas amontoadas, móveis sobrepostos uns sobre os outros, sinalizam que algo se passou ali. Note-se que não podemos entrar no espaço. Uma placa de vidro na entrada da sala limita o nosso campo de visão. Trata-se de um procedimento intencional que potencializa na instalação a sua qualidade de cena, espécie de fotografia, memória de algo que se passou. A iluminação trabalhada em um jogo de luz e sombra doa um tom dramático e teatral que corrobora para a transformação do espaço que nos revela rastros de um vendaval.

Será na terceira e última sala que nos deparamos com o motor de todo o resto que vimos antes. No salão nobre, repleto de cortinas pesadas que cobrem janelas fechadas, o artista instalou uma série de ventiladores, todos muito potentes, formando um círculo. No meio desse círculo pende um grande lustre de cristal. Enquanto o vento ecoa, escutamos o tintilar do lustre, mas ele não se move. Trata-se de um som gravado que reproduz aquilo que de fato ocorre quando as janelas estão abertas e os ônibus passam pela avenida em frente ao Palácio. A luz baixa, as cortinas que balançam, o som sutil dos cristais batendo, tudo isso gera uma atmosfera fantasmagórica e cinematográfica. Todos os estímulos aqui não são visuais, sentimos o vento, escutamos o bater do lustre. Num lugar carregado de visualidade, o artista desfaz a mesma em favor de uma experiência diversa. Assim, podemos pensar que tanto a sala de banquetes revirada, quanto o móbile que flutua no hall tem como origem essa câmera de vento. Trata-se de uma narrativa circular composta pelo artista.

O título “Evento” contribui para o sentido da mostra. Trata-se, a um só tempo, de acontecimento, bem como de um trocadilho com a palavra vento – elemento mobilizador da mostra. Se Chaves é conhecido por fazer esse tipo de associação semântica que gera uma nova porta de interpretação para os trabalhos, é preciso notar que não se trata somente de um trocadilho, mas também de um nome que sintetiza a própria experiência que nos é endereçada, a de acontecimento, ou mesmo de uma eventualidade. O vento carregou tudo e precipitou um evento inesperado.

Note-se que a grande potência visual da mostra se dá sem truques. Vemos nitidamente os cabos de aço do qual pendem os móveis, bem como o vento que sopra não tem a sua origem camuflada. Prova de que é possível surpreender sem efeitos especiais. E quando falo em potência visual pode-se frisar a expressão, trata-se de uma das exposições mais eloqüentes visualmente já realizadas pelo artista. Entramos e saímos do espaço atravessados por uma experiência no sentido forte do termo.

“Evento” me fez lembrar de uma passagem dita por João Cabral de Melo Neto, segunda a qual as palavras estariam todas, em um primeiro momento, em “estado de dicionário”. O que o poeta faz é retira-las desse estado bruto e combina-las de tal forma que aquilo se torna poesia. De alguma maneira a entrada de Marcos Chaves no Palácio da Aclamação se deu assim. Havia um dicionário a sua espera. Ordenado, hierarquizado. O artista desordenou-o, transfigurou-o, recompondo as peças em favor de uma nova ordem/desordem poética que nos dá a ver o mesmo de forma completamente diversa. Tirar as coisas do mundo de seu estado de dicionário é a potência da arte. Sem isso, tudo seria opaco e parado, com isso, tudo ganha movimento e surpresa. Eis o que nos oferta o evento de Marcos Chaves.

 

Luisa Duarte
Dezembro 2010
“Evento”