Evento
A instalação/ocupação “Evento” se deu a convite da curadoria da 17ª Bienal de Cerveira (2013) no
Palácio da Aclamação, Salvador, primeira capital do Brasil. Ela é o primeiro ato de uma trilogia que
se desdobrou em Portugal, em seu segundo ato, realizado, e que conclui-se em África, no terceiro e
não realizado ato. O Palácio da Aclamação, palacete neoclássico que remonta ao século XIX, foi
residência oficial dos governadores da Bahia por 55 anos, de 1912 à 1967, e funciona como museu
desde 1990. Seu acervo é composto por mobiliário em estilo Dom José e Luís XV, objetos de
bronze, porcelana e cristal, tapetes persas e franceses, bem como pinturas de paredes e forros
executados pelo artista baiano Presciliano Silva. Para a instalação, peças do mobiliário foram
suspensas com cabos de aço ao longo de diferentes ambientes, de modo a criar uma cena de um
vendaval hipotético. No Salão Nobre, epicentro poético da ventania, um monumental lustre de
cristal bacarat e bronze interagia, estático, com um círculo de ventiladores apontados em sua
direção e uma instalação sonora que reproduzia o som de cristais chocando-se entre si. “Evento”,
enquanto título, também traz um dado da oralidade local para o trabalho. Quando pronunciada pelos
soteropolitanos, a palavra evento tem sua sílaba tônica deslocada para a primeira sílaba, ouvindo-se
[é]_ven_to, ao invés de e_[vên]_to, conforme dita a prosódia da língua portuguesa. Processo este
que, por sua vez, estabelece um parônimo entre a palavra evento, no sentido de “acontecimento”,
“algo que acontece e que se pode observar” e a afirmação “é vento”, esvoaçando os sentidos para
além da visão.
No salão de festas do Palácio da Aclamação, em Salvador, foram ligados, ao mesmo tempo, 10 ventiladores industriais montados sobre bases vazadas de metal a meia altura, dispostos de maneira circular e direcionados para fora do centro da circunferência, estabelecendo, desse modo, uma zona neutra em seu interior enquanto balançavam vigorosamente as cortinas no entorno. Acima desta zona neutra, centralizado, pairava um grande lustre de cristais imóvel, em desacordo com o som ambiente de cristais chacoalhando.
Ainda na calçada já é possível ver que algo está for a de lugar no Palácio da Aclamação, local da exposição “Evento”, do artista Marcos Chaves, sob curadoria de Daniel Rangel. O grande hall de entrada se transformou numa espécie de cena atravessada pelo absurdo. Diversos móveis do lugar – mesas, cadeiras, camas, cristaleiras, etc. – foram suspensos desde o teto, criando uma paisagem surpreendente e insuspeitada. O Palácio de arquitetura eclético, datado de 1921, em tudo conflita com o entorno da cidade de Salvador. Desmanchar aquela ordem for a do tempo é a premissa dessa mostra.
Sem utilizar algo que já não estivesse ali, Chaves estabeleceu uma relação fina com a equipe de conservação do Palácio, condição para conseguir literalmente revirar de ponta a cabeça o mobiliário centenário. Com uma entrada principal e outra ao fundo que dá para um jardim, a brisa típica da cidade circula pelo hall fazendo com que os móveis se movimentem sutilmente sobre as nossas cabeças.
Mas o hall é somente uma parte da narrativa de “Evento”. Caminhando nos deparamos com a sala de banquetes, habitualmente repleta de um mobiliário pesado e ordenado. Chaves desarranjou toda a ordem, fazendo da grande sala, antes fria, um turbilhão caótico no qual cadeiras e mesas amontoadas, móveis sobrepostos uns sobre os outros, sinalizam que algo se passou ali. Note-se que não podemos entrar no espaço. Uma placa de vidro na entrada da sala limita o nosso campo de visão. Trata-se de um procedimento intencional que potencializa na instalação a sua qualidade de cena, espécie de fotografia, memória de algo que se passou. A iluminação trabalhada em um jogo de luz e sombra doa um tom dramático e teatral que corrobora para a transformação do espaço que nos revela rastros de um vendaval.
Será na terceira e última sala que nos deparamos com o motor de todo o resto que vimos antes. No salão nobre, repleto de cortinas pesadas que cobrem janelas fechadas, o artista instalou uma série de ventiladores, todos muito potentes, formando um círculo. No meio desse círculo pende um grande lustre de cristal. Enquanto o vento ecoa, escutamos o tintilar do lustre, mas ele não se move. Trata-se de um som gravado que reproduz aquilo que de fato ocorre quando as janelas estão abertas e os ônibus passam pela avenida em frente ao Palácio. A luz baixa, as cortinas que balançam, o som sutil dos cristais batendo, tudo isso gera uma atmosfera fantasmagórica e cinematográfica. Todos os estímulos aqui não são visuais, sentimos o vento, escutamos o bater do lustre. Num lugar carregado de visualidade, o artista desfaz a mesma em favor de uma experiência diversa. Assim, podemos pensar que tanto a sala de banquetes revirada, quanto o móbile que flutua no hall tem como origem essa câmera de vento. Trata-se de uma narrativa circular composta pelo artista.
O título “Evento” contribui para o sentido da mostra. Trata-se, a um só tempo, de acontecimento, bem como de um trocadilho com a palavra vento – elemento mobilizador da mostra. Se Chaves é conhecido por fazer esse tipo de associação semântica que gera uma nova porta de interpretação para os trabalhos, é preciso notar que não se trata somente de um trocadilho, mas também de um nome que sintetiza a própria experiência que nos é endereçada, a de acontecimento, ou mesmo de uma eventualidade. O vento carregou tudo e precipitou um evento inesperado.
Note-se que a grande potência visual da mostra se dá sem truques. Vemos nitidamente os cabos de aço do qual pendem os móveis, bem como o vento que sopra não tem a sua origem camuflada. Prova de que é possível surpreender sem efeitos especiais. E quando falo em potência visual pode-se frisar a expressão, trata-se de uma das exposições mais eloqüentes visualmente já realizadas pelo artista. Entramos e saímos do espaço atravessados por uma experiência no sentido forte do termo.
“Evento” me fez lembrar de uma passagem dita por João Cabral de Melo Neto, segunda a qual as palavras estariam todas, em um primeiro momento, em “estado de dicionário”. O que o poeta faz é retira-las desse estado bruto e combina-las de tal forma que aquilo se torna poesia. De alguma maneira a entrada de Marcos Chaves no Palácio da Aclamação se deu assim. Havia um dicionário a sua espera. Ordenado, hierarquizado. O artista desordenou-o, transfigurou-o, recompondo as peças em favor de uma nova ordem/desordem poética que nos dá a ver o mesmo de forma completamente diversa. Tirar as coisas do mundo de seu estado de dicionário é a potência da arte. Sem isso, tudo seria opaco e parado, com isso, tudo ganha movimento e surpresa. Eis o que nos oferta o evento de Marcos Chaves.
Luisa Duarte
Dezembro 2010
“Evento”
Entrevista
Evento é um título ambíguo para uma exposição. Você pode falar um pouco mais sobre ele?
Evento é o acontecimento de uma ação no espaço do Palácio, um evento com três
situações. É claro que o titulo já inclui o “‘vento”, o principal elemento desta mostra, pois é um jogo de palavras. Já pensei no título visualizando tudo, a montagem, o espaço, o convite, as fotografias, a entrada do vento na cortina .. Ao final. é sempre a idéia do vento como protagonista.
Como o seu trabalho chegou ao Palácio da Aclamação?
Por conta da repercussão na imprensa nacional, eu tive contato com o trabalho que Carlito Carvalhosa apresentou neste mesmo Programa (a exposição Roteiro para Visitação) e achei incrível. Desde aquele momento, percebi que esse lugar era muito lindo e a proposta interessante. Por isso, quando pouco tempo depois eu recebi o convite de Daniel Rangel para participar do Programa, já sabia do que se tratava. Meu intuito, a partir de então, foi criar uma situação escultórica que possibilitasse aos visitantes um olhar diferenciado sobre este prédio histórico. Ao observar as instalações – e através delas – cada pessoa pode descobrir a riqueza do espaço que as abriga.
Como se deu a inspiração para essa mostra?
Surgiu de uma lufada de ar que recebi. Quando cheguei ao Palácio, fui fotografar os espaços e pedi para que abrissem as janelas do salão. Quando abriram, senti imediatamente o vento. Naquele mesmo momento, entendi que esse era o caminho. Outro detalhe é que, adornando as laterais dessas janelas, existem afrescos com alegorias e a representações do vento, anjos que sopram de cima das nuvens. E foi esta idéia que ficou. Eu gosto de dar importância aos primeiros estímulos. Tem gente que acha que as idéias simples não são as melhores, que precisam ser mais elaboradas, mas, com o tempo, passamos a dar mais valor a estes estímulos iniciais e à intuição. A elaboração é uma conseqüência na continuidade do trabalho.
E como se deu o processo para a elaboração das obras?
Bom, eu respeito muito a ordem natural das coisas. lnicialmente, a minha intenção foi de não trazer nada externo pra dentro do Palácio. Queria aproveitar da riqueza que existe nele. Eu tenho “tesão” em fazer isso. Gosto de aproveitar o material que encontro no espaço a ser trabalhado, pois isso me possibilita investigar a memória do lugar.
Assim, o “‘vento”, que na verdade é um elemento que já acompanha meu imaginário há alguns anos, acabou que virou assunto principal dessa exposição, o elemento que deveria interagir com o Palácio e o seu acervo. As obras começaram a surgir a partir daí, da ideia de aprisionar o vento naquele espaço, de torná-lo perceptível e sentido pelos visitantes, além de criar um clima de devastação, como se um furacão tivesse passado pelo ambiente e deslocado violentamente os móveis.
Mas, eu ainda levei para a exposição outro elemento invisível, além do vento: o som. No dia em que comecei a fazer experiências com os ventiladores, direcionei um deles para o lustre do salão de festas – que foi a primeira coisa que Daniel me mostrou. Quando ouvi o som dos cristais, me encantei e decidi acrescentá-lo de maneira permanente na instalação. Gravei durante a noite o som deles manipulados por mim. Criando de alguma maneira uma situação fantástica, fantasmática , onde o lustre fica estático e ao mesmo tempo você ouve o som dele como se estivesse vibrando com o vento.
Criei um zona neutra de vento ao redor do lustre, onde ele permanece imóvel, apesar de todas as cortinas em volta estarem voando bastante e as discretas caixas de som entoando o som dos cristais
Fora isso, Evento é um trabalho que não tenta dissimular as coisas, todo o processo de elaboração das instalações está ali, exposto, fazendo parte das obras. E o fato de estar usando uma escala muito maior do que nas minhas exposições com objetos não quer dizer que quis fazer algo mirabolante. Estava sentindo falta de trabalhar com grandes dimensões, com o espaço, mas fiz isso usando o mesmo procedimento de economia e simplicidade que geralmente eu uso em outras exposições de menor escala.
O vento já era um tema presente em tuas criações, então?
Sim, essa imagem me acompanha desde o tempo. Quando eu estudava arquitetura, eu pintava camisas, e uma delas, a de maior sucesso tinha um impressão de um tornado, localizado bem no meio do peito, no chacra. Era para mim como se fosse um talismã, um amuleto. Eu usava aquela camiseta o tempo todo! Sempre pensei em trabalhar com essa imagem. Nos anos oitenta fiz desenhos, pinturas, sketches de projetos com vento. É muito bacana retomar essa história aqui na Bahia.
Por destoarem um pouco de suas obras anteriores, onde o humor, a ironia, era algo mais evidente, podemos afirmar que as três instalações dessa exposição trazem uma versão mais lúdica e intuitiva do seu trabalho?
Talvez eu esteja substituindo o humor por uma coisa mais fantástica, mais lúdica mesmo, como no caso de fazer esses móveis voarem. Em Evento tudo é mais sutil. Mas tenho certeza de que aqui, na Bahia, é mais fácil fazer esse trabalho do que seria em Curitiba ou em São Paulo, por exemplo. A Bahia tem mais coragem de fazer coisas. A. Bahia não se assusta, até porque está mais longe da Europa conservadora.
Falando em Bahia, no último momento, um novo elemento, da religlão afro-brasileira acabou entrando na exposição, Como foi isso?
Eu tenho uma amiga muito ligada à Bahia, que quando eu contei que iria fazer aqui uma exposição na qual o vento é elemento principal, me disse que eu deveria pedir licença a lansã. Falei sobre isso com Daniel, o curador, e fiquei à espera de que a gente pudesse fazer algum trabalho, um ritual, uma celebração. No entanto, o que aconteceu foi que, na semana anterior à abertura, numa quarta-feira (que descobri depois que era o dia dedicado a este orixá}, Daniel chegou à DIMUS me dizendo que teve um sonho com lansã dentro do Palácio, comandando os ventos. Ai, ele deu a ideia da gente colocar um par de chifres em uma das salas, que são os objetos usados no culto para chamar esta divindade. Na hora, não acreditei, pois eu tenho guardado ate hoje um par de chifres que comprei há 25 anos e, desde então, tenho tentando usar nos meus trabalhos, sem conseguir! Agora, alem do pedido de licença, acabamos incorporando este elemento ligado a lansã na exposição. Mais uma intuição, mais uma coincidência, do tipo que só possível acontecer aqui, na Bahia.