O desvio é o alvo (Luisa Duarte)

 

“[…] há um preconceito enraizado que vê a tragédia como algo mais profundo do que a comédia. Mas Sócrates indicou uma identidade entre comédia e tragédia, e não vejo nenhuma razão pela qual a comédia não possa, como na Divina Comédia (de Dante), ser profunda e nos mostrar quais os nossos limites e como encontrar a felicidade dentro deles. A Divina Comédia, é claro, não é muito engraçada, mas o riso é incitado pelo conhecimento de nossos limites, nossa inabilidade para permanecer eretos quando escorregamos numa casca de banana. Ou para manter uma ereção no ato de amor – que é engraçado e trágico ao mesmo tempo, mas menos trágico do que engraçado, se conseguimos aprender a rir disso. Mas boa parte da arte contemporânea é brilhante e sagaz, quer seja engraçada, quer não.”

 

Arthur Danto[1]

 

 

“O humor é uma forma de tirar a tragicidade das coisas,

de olhar o mundo de uma outra maneira, menos fatal.”

Marcos Chaves

 

 

Em uma subversão da noção ordinária – que se conecta com o jogo proposto pelo próprio trabalho de Marcos Chaves –, podemos afirmar que a bússola da obra Passarinho que come pedra sabe o cu que tem é o desvio, desvio que promove deslocamentos. Chaves é um realizador de proposições artísticas que, por meio da apropriação ou da intervenção, deslocam significados correntes, banais, dados como certos, a fim de gerar a aparição de novos sentidos, inesperados, não vistos, não perscrutados. Trata-se do olhar agudo que se descola do habitual, reflete e produz o novo na linguagem, tendo como motor um misto contundente de humor e ironia. A escolha por estes recursos não é de forma alguma casual, e sim coerente, pois eles são portadores de um alto grau de potência desviante: o humor e a ironia são dispositivos que acertam o alvo pelo caminho menos óbvio.

Este procedimento típico da obra de Chaves – que como já foi bem constatado ocorre valendo-se muitas vezes da vitalidade e atualidade da matriz duchampiana e seus ready-mades, além da fotografia[2] e do vídeo – pode ser visto como uma busca incessante por tirar a experiência de sua banalidade; dar leveza a circunstâncias trágicas via humor; ver de soslaio situações e objetos já enquadrados pelo senso comum; fazer crítica à própria arte e à condição de artista valendo-se de uma fina ironia.

A meta aqui é realizar o desvio, o deslocamento. No universo criado pelo artista, tudo é o mesmo, mas já não é o mesmo. Como o desenho do pato/lebre de Wittgenstein, que, dependendo do ponto de vista, pode ser um ou outro. Tudo se alterou, nada se alterou. É o mesmo, mas já não é o mesmo, por um simples e leve deslocamento do olhar.

Em tal construção de deslocamentos, opera-se uma espécie de intervenção clínica no mundo por intermédio da arte. Nesta intervenção, a linguagem (nesse momento entendida como língua) tem papel central. Sabedor perspicaz e ágil da polissemia contida em cada palavra e nas combinações de umas com as outras, Chaves faz dos títulos de seus trabalhos partes fundamentais para a articulação do sentido. Cabe lembrar a condição especialmente ativa que a obra do artista solicita do espectador: será ele quem irá fechar o círculo do sentido, entrando no jogo de associações e/ou inversões que a obra propõe.

Mas o que representa tal repertório de procedimentos – que aqui chamamos de desvios, deslocamentos, intervenções – encarnados nas obras do artista? O que essa série de deslocamentos produz?

A tentativa de responder, ao menos em parte, a tais perguntas irá tangenciar, inevitavelmente, aspectos que tocam no antigo binômio arte e vida. Mas para os que tremem só de ler estas duas palavras tão próximas uma da outra, saturados que estão pela enxurrada de obras de cunho autobiográfico que a produção dos anos noventa legou, cabe tranqüilizá-los. A tentativa aqui não é a de por intermédio da vida compreender a arte, mas a de ver na arte de Marcos Chaves que tipo de enfrentamento está havendo com a vida, com o mundo.

A própria obra do artista não nos permite fazer uma leitura estritamente biográfica. Há uma impessoalidade na sua estética e um pulso forte na condução intelectual e intuitiva que fazem com que este tipo de abordagem se torne equivocada. O procedimento estrutural encontrado nesta obra – a sua arkhé[3] – nos lega, isso sim, contundentes índices de uma nova possibilidade de ligação com a vida, com as coisas do mundo e com a leitura que fazemos de nossos próprios destinos.

Ao constatarmos que esta obra lida com objetos e imagens já existentes – no caso tanto dos objetos e instalações, quanto dos vídeos e fotografias –, verificamos que, em princípio, aqui não se está criando nada de realmente novo: trata-se de realizar uma sutil e fina articulação que irá gerar uma nova significação para estas coisas já existentes. Eis o pulo do gato. O desvio do mesmo que já não é o mesmo é a possibilidade de que, a cada momento, a cada encontro com o mundo, sejamos capazes de tirar a experiência deste encontro da sua banalidade original, expressando, na linguagem, sentidos antes inexpressos. Quando se afirma que Marcos Chaves “surpreende significados e valores imersos nas coisas vulgares, dissimulados no hábito ou na convenção”[4], está-se afirmando justamente este poder contido em cada uma de suas obras de se desprender das teias paralisantes do hábito (que embotam o olhar, o pensamento, a vida) e revelar sentidos surpreendentes no que antes parecia fadado à visão única ou até mesmo à não-visão. Esta operação artística, que tem no humor e na ironia seus dispositivos principais no caso de Chaves, garante as possibilidades de reversão do que parecia irreversível; de o riso surgir diante do que em princípio só provocaria dor; de a riqueza polissêmica surgir onde só haveria um sentido; do aparecimento do terceiro que nos tira do pêndulo fatal do duplo: bem ou mal, sombra ou luz.

 

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No trabalho que Marcos apresenta agora – Passarinho que come pedra sabe o cu que tem, na Escola de Cinema Darcy Ribeiro, local onde funciona o CAPACETE entretenimentos sob curadoria de Helmut Batista –, temos uma amostra da potência desviante que habita a obra deste artista.

O trabalho traz consigo diversas marcas características da produção de Chaves. Trata-se de uma intervenção em um ready-made, no caso os versos dos maços de cigarro. Aqui, a advertência colocada pelo Ministério da Saúde é retirada e no seu lugar entra a expressão tragicômica “Passarinho que come pedra sabe o cu que tem”. O objeto continua o mesmo (em uma escala ampliada), a tipografia também, mas se retira a frase original “Fumar causa câncer no pulmão”, ou “Crianças começam a fumar ao ver os adultos fumando”, e introduz-se um dito popular. No lugar das imagens originais, encontra-se o próprio artista simulando e ao mesmo tempo parodiando tais situações – do sujeito sem fôlego diante de uma escadaria, do adulto fumando ao lado do filho, etc.

As advertências do Ministério da Saúde passaram a vir nos maços de cigarro há cerca de quatro anos. Sabemos que uma das principais marcas culturais que a década de 1990 nos legou foi a invasão da ideologia do politicamente correto nas diversas dimensões da vida cotidiana e também no seio da dita alta cultura, como as universidades e as artes plásticas. Na face negativa desta onda gestada nos EUA, encontram-se aspectos como lances de neoconservadorismo, recalques dos prazeres, e intromissão em dimensões da vida do indivíduo em que não caberia ao governo intervir. As advertências nos maços de cigarro constituem um sintoma do politicamente correto deste último tipo, qual seja, o de se rogar o direito de dizer o que é certo ou errado para a vida de cada um. A extrema legitimidade conquistada por esta ideologia acabou por habilitar os governos a agirem desta forma.

Passarinho que come pedra sabe o cu que tem possui como alvo este autoritarismo de mau gosto. Esta frase popular nos remete ao indivíduo que afirma: não venham dizer o que é o melhor para mim. Sim, como pedra e sei os desdobramentos disso. O lado bom e o ruim. Afirmo os dois, a um só tempo. A expressão presta-se justamente a doar um sentido cômico a uma circunstância trágica. Trata-se do humor intervindo sobre o significado original da situação e inserindo um outro. No lugar do fumante tomado pela culpa e vergonha de fumar, entra o fumante que não reprime seus vícios, pois sabe onde eles gozam e onde eles doem. Enfim, o indivíduo que sabe rir de si mesmo, de suas delícias e desgraças, que assume a esquizofrenia da vida, essa linha tênue que separa prazer e dor, assumindo o gozo no fumo, nos entorpecentes, nos prazeres da carne e se recusando a recalcá-los.

A presença do próprio artista nas fotos que simulam as situações advertidas contribui tanto para enfatizar este caráter de responsabilidade sobre os próprios atos da esfera da vida privada – que o politicamente correto tenta penetrar e censurar – quanto para doar mais humor à situação. Temos aqui o artista que ri de si mesmo, doando leveza e graça para a situação pesada do fumante que é advertido, a cada maço, que, se continuar com aquilo, irá morrer.

Neste trabalho, também é clara a aproximação entre vida e obra. Fumante que é, Chaves sabe do que está falando. É passarinho, come pedra e conhece o próprio cu. Mas deve estar claro neste ponto que a relação que se faz aqui entre vida e obra não se restringe à mera decifração de uma condição de ordem biográfica transportada para a esfera artística, e sim de uma articulação que envolve diversas camadas de sentido. Passarinho que come pedra sabe o cu que tem comenta criticamente – valendo-se da potência desviante do humor e da ironia – uma situação/sintoma que não é de apenas um indivíduo, mas da condição humana e mais precisamente deste tempo que é o nosso.

E se as palavras de um certo pensador francês valerem de alguma coisa, e pudermos pensar, como ele pensou, que uma obra de arte “é tudo que se quiser […], desde que funcione”, que “a obra de arte moderna é uma máquina e funciona como tal”[5], aí então, talvez, possamos tirar algum efeito desse encontro atento e cuidadoso com a máquina de Marcos Chaves. Quem sabe tal encontro possa surgir para nós como uma centelha que carrega consigo o potencial de nos lembrar da possibilidade, sempre aberta, de se promover desvios no mesmo. Mesmo que, pelo desvio, já não mais se configure como o mesmo.

 

 

Notas

 

[1] Esta citação foi extraída de uma entrevista concedida por Arthur Danto publicada no livro Memórias do presente – 100 entrevistas do Mais! – Artes do conhecimento, com organização de Adriano Schwartz, editado pela PubliFolha, em 2003. Arthur Danto é crítico de arte e professor de filosofia da Universidade de Columbia, nos EUA. Autor de After the end of art, Beyond the Brillo Box, Encounters & reflections – Art in the historical present, entre outros. Escreve regularmente para o jornal nova-iorquino The Nation.

[2]  No texto “Vazio e totalidade”, de 2002, publicado por ocasião da exposição Come into the [w]hole na Galeria Nara Roesler, em São Paulo, Ligia Canongia atentou para um aspecto importante, qual seja, o da aproximação entre ready-made e fotografia no contexto da obra de Marcos Chaves: “A mesma lógica que preside o ato fotográfico governa o ato duchampiano. O readymade, como a fotografia, suspende o objeto do contínuo de seu tempo e de seu meio original, da cadeia progressiva, evolutiva, separando uma fatia do mundo do resto do mundo. O readymade é outra espécie de cut, que interrompe, assim como a foto, o fluxo normal de um objeto. O disparo que fundamenta a operação fotográfica é o mesmo disparo que isola, no readymade, uma porção do mundo.”

[3] Esta palavra de origem grega possui dois grandes significados principais: 1) O que está à frente e por isso é o começo ou o princípio de tudo; 2) O que está à frente e por isso tem o comando de todo o restante. No primeiro significado, arkhé é fundamento, origem, princípio, o que está no princípio ou na origem; ponto de partida de um caminho; fundamento das ações e ponto final a que elas chegam ou retornam. No segundo significado, arkhé é comando, poder.

[4] CANONGIA, Ligia. “Vazio e totalidade”. Texto publicado por ocasião da exposição Come into the [w]hole, de Marcos Chaves, na Galeria Nara Roesler, São Paulo, em 2002.

[5] DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Tradução de Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado. Editora Forense Universitária, 1987. p. 145.

 

Luisa Duarte é crítica de arte e curadora. Este texto sobre a obra Passarinho que come pedra sabe o cu que tem foi produzido no Rio de Janeiro, em setembro de 2003.