Das armadilhas visuais de Marcos Chaves (Adolfo Montejo)

 

 

“[…] um objeto que, diferentemente de qualquer objeto de consumo, antes de encher, antes de satisfazer nossa libido vivendi, viria pelo contrário a tirar, a erosionar, a dividir, a perfurar buracos em nós.”

Gérard Wacjman

 

“Não situar a mensagem inteiramente de parte de um dos dois,

imagem ou texto.”

Marcel Broodthaers

 

I (Intro como mapa)

                                                                  

Querer estipular uma chave única para a poética de Marcos Chaves, a essas alturas de sua produção, seria pretender construir um atalho à procura de uma hermenêutica unidimensional que servisse às diferentes vozes que entram em jogo. Portanto, recusada a via reducionista, optamos pela maior pluralidade de olhares e simultaneidade de linguagens, que, longe de ser só o patrimônio estandardizado da época (também moda recorrente como linha de fuga), é, antes de qualquer coisa, o verdadeiro território de nossa identidade contemporânea, da qual faz parte o artista carioca, cuja produção se inicia no final dos anos 1980, num período onde a “volta à pintura” era a tônica dominante. Ainda mais quando esses saltos entre suportes (ou ex-gêneros) conseguem construir uma verdadeira urdidura, que responde mais às preocupações contínuas do artista que a algumas veleidades congênitas da pós-modernidade, de nosso tempo.

 

Em qualquer caso, em síntese preliminar, reconhecemos algumas vias de aproximação que vertebram a sua trajetória até agora. Elas se apresentam em quatro dimensões: pela objetualidade explícita, como primeira fonte de trabalho estético, e depois metamorfoseada, mais implícita; pela textualidade ou trabalho com os jogos verbais/visuais, em que o componente semântico das palavras se alia às imagens, objetos, fotografias para chegar a outra significação sígnica; pela intervenção espacial derivada em parte de uma preocupação cada vez maior com a arquitetura e, sobretudo com um espaço urbano, sempre socializado e contaminado de elementos genéricos virados do avesso; e, por último, pela dimensão cada vez mais premente do uso da fotografia como ferramenta conceitual e instalativa, e que às vezes limita estreitamente com seus últimos vídeos quase estáticos.

 

A objetualidade não deve ser reconhecida apenas como ponto de partida, pois tem uma importância fulcral, já que o artista divisa neste âmbito um campo de pesquisas perceptivas e de procura de outros significados. Ainda mais quando esta é mapeada, obtida nas coordenadas da cotidianidade, quer dizer, no humus da contaminação humana. Os objetos de Marcos Chaves fogem da excelência, da manufatura de procedência elitista (numa sociedade brasileira que pratica a exclusão e a mitificação de privilégios como fonte envenenada até na própria consideração e procedência material dos objetos), e se inscrevem – a apropriação sempre é um caminho de ida e volta – num horizonte rente, próximo, cotidiano, em alianças insuspeitadas com o mundo. Aliás, a cotidianidade aparece como contraponto para evitar engomados discursos desligados da vida. E é curioso que, até quando a objetualidade é acionada em instalações, ela ganha uma natureza mais pública, ela costuma ser doméstica, altamente vivenciada (Comfundo, Buracos e Lugar de sobra são trabalhos que destilam coletividade, por intermédio de sua permeabilidade.)

 

Um mapa do objetual que se inscreve na cartografia expandida, que a partir dos anos 1960 e 1970 passa do objeto para o conceito, e que se sintoniza em parte com o perfil neodadaísta, assim como com o mesmo Duchamp, quem “encontra um novo pensamento para o objeto”. É, portanto, com as neovanguardas que o objeto como elemento morfológico aponta para a criação de um novo repertório, que a arte objetual adquire a consideração de uma nova forma de escultura. A partir daí, longe de qualquer sentido unívoco ou unidimensional, abre-se um período de exploração dos objetos ou fragmentos deles, em toda a sua riqueza associativa. Um campo em expansão inusitado – como novo gênero – que oferece uma grande condição translatícia e polivalente. E que, como signo de apropriação de uma realidade que se quer contestar, sobretudo no mar de objetos de consumo narcotizante de nossa sociedade de imagens-mercadorias, ainda quer colocar o gesto artístico num território de responsabilidade com o mundo[1].

 

Bom exemplo é a série Hommage aux mariages (uma primeira aparição da cor amarela, em 1989), que celebra ironicamente distintos acasalamentos de toda uma galeria de objetos, cuja simetria converte tudo em uma natureza hermafrodita. A redundância sonora do título, de uma visualidade duplicada, faz com que tudo se enfrente com um espelho invisível (onde o sentido do duplo, como da réplica, será constantemente trabalhado pelo artista). Uma sutil ironia corre pelos primeiros trabalhos, anunciando uma arma de distanciamento que se equaciona bem com a procedência corriqueira, popular e até vulgar dos elementos escolhidos para os assemblages. Todo um campo de convenções que vai ser mexido numa direção ou em outra, via re-contextualização, deixando a parte convencional à deriva. Neste mesmo âmbito, Simón Marchán Fiz já salientou que “a intensidade máxima do objetual e coisal provoca um efeito aparentemente contrário: o conceitual, na medida em que remete para além de si mesmo e deriva em um instrumento de ampliação e extensão da consciência”[2].

 

Ainda assim, esta onipresente objetualidade – principalmente em seus últimos trabalhos – caminha para uma transformação, ao passar a ter uma maior presença nas obras fotográficas, permitindo assim um jogo de escalas – uma outra forma de des-naturalização da imagem – e outra apresentação, mais planar, mais irreal em sua suposta hiperobjetividade. Apesar de certa proximidade visual com a definição que a publicidade faz em seu uso das imagens, aqui se celebra o contrário: a ambigüidade, o paradoxo, a virada semântico-icônica (que até agora se apresenta como último muro de fundo que a propaganda não pode atravessar).

 

Mas o que pode estar mais distante dos objetos que a objetividade? Além de uma raiz verbal próxima, o certo é que aqui o uso de objetos é o ponto de partida, palavra-zero, como dizia Marcel Broodthaers (“eu utilizo o objeto como uma palavra zero”), sobretudo quando se reconhece que neles gravitam umas dimensões simbólicas que um uso determinado tem tornado ideológico. Neste imaginário simbólico no qual Duchamp, dadaístas e surrealistas acertaram o tiro de misericórdia transita uma grande parte da prática artística de Marcos Chaves. De fato, e continuando com a pergunta antes pronunciada, Galder Reguera já antecipa que “os objetos não são garantia da objetividade, porque não se esgotam em sua dimensão material”[3] (aliás, algo que a publicidade também sabe para seus fins instrumentais, para sua fetichização comercial).

 

Se todo objeto, como toda imagem, tem a sua tradução significante em nosso imaginário sociocultural, é uma tarefa de des-construção jogar não só com a sua aparência formal, física, como com aquela aparência outorgada. O levantamento desta licença sob suspeita leva à diferenciação entre referência e sentido (algo que Gottlob Frege enfatizou com distinto percurso semântico). Saindo deste universo da lógica do filósofo, poderíamos dizer que a referência se vê apoiada na denotação, assim como o sentido na conotação. Porque é sobre o lado associativo que funciona a efetiva interferência do artista. Aliás, na poética de Marcos Chaves, o debruçar-se sobre as relações, sobre as conexões já estabelecidas e aquelas por inaugurar na abertura de sentidos, cumpre uma condição dialógica.

 

Por outro lado, a uma textualidade visual manifesta pertence uma parte significativa de seus trabalhos. Algo que, diga-se de passagem, se poderia inscrever também na herança de certa poesia visual expandida, daquela poesia experimental que atingiu uma condição plástica fora dos parâmetros do suporte originário de papel (e na qual o Brasil tem lugar preponderante com as suas neovanguardas do meio século). Neste sentido, é interessante situar poéticas fronteiriças como as experiências-ação de Paulo Bruscky; as equações popcretas de Waldemar Cordeiro, em que a aliança de texto e imagem criava peças ambivalentes; ou a experiência cada vez mais fronteiriça entre-signos de Lenora de Barros. No caso do artista do Rio de Janeiro, desde muito cedo, seja com The hanged man (1987) ou com objetos que intercalavam a presença de palavras: há uma série de espelhos com palavras como reflexos escritos que acionavam uma circularidade contínua em Não falo duas vezes (1995) – o texto espelha-se em sua materialidade – ou Não falo articulo (1994) – onde a linha de leitura atravessa imagem e texto –, por exemplo, fazendo da simbiose icônico-verbal outra escrita, adquirindo todas as peças uma condição próxima do poema-objeto.

 

Esta familiaridade com o jogo de palavras, com a virtualidade da linguagem escrita ou falada, e com “a traição das imagens” (na língua de Magritte, sempre referencial) alcança uma nova semântica dos objetos, assim como das fotografias, num universo de relação que coloca em xeque as procedências (já excessivamente classificatórias ou desgastadas pelo uso excessivo ou normativo). O que dá margem para trabalhar sobre os giros semânticos: chavões, expressões de gíria, palavras com possibilidades ambivalentes, duplos sentidos… registros verbais nos quais se pode desenvolver uma tensão suplementar, uma condensação intersemiótica que também herda experiências de Joseph Kosuth, certo gosto por traduções, tautologias etc. Em um trânsito duplo “da idéia à imagem, e da forma à idéia”, como diz Nicolas Bourriand, pois trata-se de oferecer/reconhecer as “armadilhas da linguagem” (de acordo com a expressão de L. Wittgenstein), e colocar então uma condição instável, cujo sentido não seja facilmente preso a nenhum lado do discurso. Não imagens dialéticas então, crentes na possibilidade de síntese, e sim uma obra que ofereça a sua própria análise, as suas contradições “exacerbando as tensões que existem entre elas”[4]. (Bom exemplo é Come into the [w]hole, um convite irônico cuja obra é o título, deixando de fora a participação canônica do cubo branco, qualificado de buraco, mas na divisa contaminada da palavra whole entre vazio e totalidade.)

 

Toda uma materialidade textual que se inscreve de formas diversas: em contradição ou ambivalência do objeto ou da fotografia com a parte verbal inscrita, ou no papel que cumpre na ambigüidade de títulos – sempre com charada conceitual embutida –, caso de Registros, fotografias que apresentam registros de banheiros, Hommage aux mariages (com seu jogo sonoro redundante, ironicamente cacofônico), ou esse híbrido de relógios e imagem fotográfica chamado Death (escrito à moda de caligráfica lembrança para não esquecer nosso maior temor, aqui amplificado “em estéreo” como diria o artista.) Ou também com a criação de construtos verbais apropriados: instalação fotográfica com o título LandEscape (neologismo que inclui a idéia de escape, fuga da paisagem, em sintonia com o tríptico das imagens do céu, as placas e a improvisada cruz de um buraco no meio), ou na homenagem a Mapplethorpe (em que se lê o apple embutido do nome em fotografia de uma maça metálica que re-liga a origem do desejo e a morte).

 

De fato, há na trajetória de Marcos Chaves uma inveterada pulsão de ordem poética, fora da padronização estilística (a poesia não é uma coisa prévia) que combina perfeitamente com a concentração e dilatação interpretativa de seus trabalhos, onde o estranhamento procura uma percepção primogênita, fora do território habitual de nossa automatização do olhar. Esta poeticidade, este sistema de sinais, como diria um velho poeta espanhol, recorre ao conceito de cruzar semiósis, linguagens (em que Schwitters foi pioneiro e herança). À sua maneira, Marcos Chaves não estuda “a vida dos signos no interior da vida social” (como prometia Ferdinand de Saussaure)? Ainda mais quando, como já vimos, a procedência exploratória do artista baseia-se num universo ligado à realidade mais plural, cotidiana e até simplória.

 

Não são poucos os artistas que escrevem imagens, que usam como recurso a escrita como parte estrutural e conceitual das obras[5]. No caso de Marcos Chaves, o fiel da balança fica nesse feliz intervalo bastante comum em sua poética, que é o de divisar uma natureza híbrida, de fazer de qualquer iconicidade estética construída uma crítica contextual de sua natureza representacional (simbólica, visual). Além de examinar duas condições de linguagem, o que significa em muitos casos ler os caracteres sígnicos que as imagens e as palavras detentam em sua codificação convencional, padronizada, criar, então, outras cifras cuja realidade não é só a que vemos, pois, no fundo, se trata de escapar da linearidade visual, conceitual, de criar uma vinculação que seja o interstício, o determinante da nova significação articulada. Nomear o vazio entre os caracteres sígnicos e, paradoxalmente, o construído para essa nomeação. Não esqueçamos que os dois âmbitos, verbal e visual, feitos imagem conjunta favorecem outra fenomenologia perceptiva, bem diferente daquela que trabalha a sobreiconização e a hipotrofia verbal de nosso mundo mediático. A presença de texto e imagem na arte, como já acontecia na poesia visual mais ousada, declara-se a favor de uma intervenção crítica, des-alfabetizadora do obrigatório manual dos compartimentos estanques, em que a realidade administra nossa participação.

 

A outro território de atuação correspondem as instalações em espaços expositivos diversos, as instalações e as intervenções site specific. Na maioria dos casos destas intervenções espaciais, a objetualidade cumpre um papel transcendental, na medida em que se situa num lugar central, onde a materialidade do espaço é interpenetrada pelos objetos. Produzindo-se algumas formas de modificação: “espaço/objeto, objeto/objeto, objeto/espaço” (como Estrella de Diego define para uma artista próxima, Ana Prada), sendo a sintonia entre eles – objetos e ambientes – muitas vezes uma coisa só. Assim, a configuração de Comfundo é o delírio objetual de uma bolsa transformada num espaço de colunas, um vazio arquitetado que confunde, o objeto fazendo o espaço, como em Sem título (instalação feita com postes de metal de sinalização) ou na projeção da sombra da mão que re-dimensiona o teto do Solar GrandJean Montigny; em Eclético, são as esculturas arquitetônicas que recebem ajustes visuais, o espaço redefine-se pelo objeto, apesar da sutileza dos micromateriais usados (cílios, batom, metal, vidro, espuma); e em Logradouro, o espaço e o objeto são a mesma coisa, como acontece com Lugar de sobra, outra instalação que trabalha a série, de forma nada minimalista, descontraída, e contando com a contaminada vivência dos objetos/banquinhos populares e seu uso público indiscriminado, ao acaso.

 

Correspondendo a uma atenção com a exterioridade (saindo do estatuto ensimesmado e burguês da forma que se quer autônoma, isenta), os diversos trabalhos pretendem outra legitimação fora de si mesmos, de sua condição de exclusividade artística. Lugar também onde o sentido de autoria mergulha em outras águas mais habitadas. Logradouro, Comfundo, Lugar de sobra e Eclético convidam a esse contágio. E é muito sintomático que os materiais (ou espaços convertidos em materiais), sejam de índole coletiva, social, mundana. Tanto os fatores de recepção e produção, como o de finalidade das obras, apresentam-se contaminados, mais perto da obra aberta que permite entradas e saídas que da obra-entidade auto-suficiente. Esta interação pública não tem nada a ver com antigas concepções dirigistas, com derivações ideológicas, e sim com outra expectativa nada contemplativa da obra de arte.

 

Outra intervenção espacial sui generis, sobre uma paisagem não urbana, fruto de workshop na Inglaterra (CYFUNIAD, 2001), delata a intromissão de sinais de trânsito de animais (veados), que deixam de ser placas de perigo para inscrever-se no próprio marco da natureza (selvagem), de onde procedem esses animais. O fora de lugar das placas de direção coloca a semântica codificada no meio de outra correnteza que não é a da estrada, no bosque, para soltar as imagens de um imaginário preso. E do qual se pode extrair também alguma fábula homoerótica. Por outro lado, a intervenção trabalha o lado paradoxal de uma visualidade construída como uma estranha proposta de land art, ou de um objeto de arte no contexto da natureza, aproveitando a tensão cada vez mais existente entre cultura e natureza.

 

Além dos caracteres enunciados, o peso em crescendo do uso da fotografia nos últimos tempos recebe um aumento visível na obra do artista, ainda que não se inscreva no estrito universo do gênero fotográfico clássico. Marcos Chaves associa-se aos artistas contemporâneos que reconhecem este meio (a fotografia) como lugar de resultados, de experimentação da imagem. A questão já não é tanto fotografar, e sim fazer trabalhos fotográficos, quer dizer, utilizar a imagem e inseri-la em outros suportes ou objetivos diferentes da contemplação canônica, bidimensional, planar. É a idéia como forma, uma herança conceitual que rege os destinos estéticos destes trabalhos, na medida em que a semelhança entre ready-made e fotografia se evidencia pelas inerentes operações de descontextualização. Lembremos que Duchamp já valorizava a ficcionalidade deste meio que duvidará da representação do real cada vez mais, segundo avança o século XX.

 

Porém, feitas tais considerações, esta fotografia (com ou sem selo de autonomia), que salta a sua própria sombra genérica, no fundo aparece como uma extensão dos interesses anteriormente expostos, pois às vezes se trata de uma convergência de registros com uma objetualidade preferente, inscrita em espaços específicos, e que em todo caso se potencializa como outro campo de atividade, sempre em vinculação interdisciplinar. Apesar do reconhecimento de tal condição híbrida do trabalho fotográfico, também é certo que o apuro técnico não é desconsiderado em nenhuma das possibilidades oferecidas: sejam caixas de luz, fotografias com objetos (Death), ou imagens trasladadas a outras fisionomias e suportes (Água Viva, 1/1, Eu só vendo a vista). Como programa estético emancipatório, a fotografia questiona seu valor representacional, em pró de uma imagem mais flexível, entre a aparência e a sua contestação.

 

Nesta direção, é curioso que para Marcos Chaves seja cada vez mais sedutor encontrar o motivo da apropriação fotográfica em estado bruto: Buracos, Próteses, sem a necessidade de nenhum acréscimo exterior, sem inscrever ou acrescentar algo em estágio/condição de “montagem”. São trabalhos vinculados a seu próprio princípio de visualidade, interessados na pesquisa sobre a réplica (ou imagem dupla, magnética), cuja primeira intervenção é definitiva e conceitual em todos os casos que aciona, mas que não deixa de duvidar sobre a imaterialidade do real, dos objetos e da fotografia ao mesmo tempo.

 

II (4 apontamentos breves)

 

Costuma ser insuficiente enumerar algumas das práticas ou estratégias de criação que vêm sendo usadas na contemporaneidade. Esses gestos que respondem às figuras da apropriação, do deslocamento, da intervenção/interferência, da procura do paradoxo etc. fazem parte da lista de operações que lida com o verdadeiro quid da questão estética: a invenção de “lugares” para outra representação que ainda não esteja reificada. Ou dito de outra forma: que distância é possível manter-se do real? Em virtude da problemática desta questão, decidimos escolher alguns pontos subjacentes, mais significativos para a obra de Marcos Chaves, já que este não é o espaço para tal aprofundamento. O valor que adquire a cotidianidade como território, o caráter flâneur a que reportam muitas de suas atuações, a subjetividade como mapa crítico e o humor como moral artística são alguns deles. Sobre estes referentes, o artista trabalha toda a sua trama imagética por meio da simultaneidade de gêneros, assim como pela obsessão por algumas idéias (o que constitui um pathos imaginário). De fato, nenhuma preocupação estética promete ser inocente, supérflua, intercambiável.

 

A cotidianidade tão reconhecível em seu trabalho (por elementos, espaços de intervenção) representa uma determinada relação com o mundo, nada teleológica, nem baseada em alguma transcendentalidade de ordem metafísica. Em todas as operações do artista, o pulso da vida está presente como uma conexão rente ao chão, um fio terra que é também horizonte. Como acontece com Joan Brossa (poeta e artista com quem pode compartilhar alguns aspectos), da cotidianidade pode-se extrair quase tudo, incluídos os mistérios que haja. Porém, não se trata de uma cotidianidade lida como realidade convertida em realismo, e sim de um território de campo, até “etnográfico”, para vislumbrar o insólito dentro do dia-a-dia. O olho microscópico de Marcos Chaves reside nessa tarefa de divisar a potência do miúdo, do simples, e as suas conexões sensoriais, reflexivas, em suma, das coisas que se negam a ser a Coisa.

 

A exploração da subjetividade é colocada em primeiro plano: em causa, em construção, como diálogo, como parte de um mapa crítico, que serve de ponto de partida para estabelecer questões sobre identidade pessoal e interpessoal, novas contextualizações e agenciamentos da própria imagem (novas formas de auto-retratos ou novos contextos de inscrição coletiva). Recurso bastante produtivo para certa geração de artistas a partir dos anos 1990 (João Modé, Brígida Baltar ou José Rufino), que relêem a situação biográfica ou pessoal inserida no espaço vazio deixado pelas explicações maximalistas ainda recentes. Aliás, poderíamos fazer um percurso da obra do artista baseado neste aspecto, que chega até os últimos vídeos, em que a sua presença é oferecida em forma críptica. Não em vão, há toda uma corporalidade explícita ou implícita na obra de Marcos Chaves (certo Eros refletido e subliminar), porque a subjetividade tem seu relato autobiográfico e campo de exploração no corpo (longe das dualidades de outrora), como território íntimo, mas também relacional, que pensa nesse comum (comunidade) representada pelo outro, além de nossa incompletude.

 

O seu lado flâneur (passeante), liga irremediavelmente os limites da identidade (subjetividade) com o caminhar/deslocar-se na cotidianidade contemporânea. Além da velocidade visual quase aforística de muitos trabalhos de Marcos Chaves, a sua apreensão do espaço tão simbolicamente público, é reconhecível pela ubiqüidade e movimento. Os buracos, as próteses, fazem parte deste encontro à deriva, perambulante – como faziam sistematicamente alguns surrealistas como Breton ou Aragon –, que alimenta certa multidisciplinaridade de olhar, uma apropriação e descontextualização quase contínua, ad infinitum. Assim, vários trabalhos potencializam o sentido da localização, o estágio de passagem (Lugar de sobra, Logradouro, respectivamente): deslizamentos e construções subjetivo/objetivas do espaço urbano e de uma subjetividade em curso (os casos de Gabriel Orozco ou Francis Alÿs desenvolvem este mesmo paralelo a sua maneira, entre os limites da objetualidade, o nomadismo e o território).

 

Chegar ao humor em Marcos Chaves significa tocar num dos epicentros de sua sintaxe artística, pelo grau de relações que podem ser estabelecidas a partir daí. Tal recurso funciona como rebaixamento de toda e qualquer importância ontológica, como antídoto, oferece leggereza (termo animado por Italo Calvino, no sentido de leveza), pois não se trata de trocar uma verdade por outra, mas de reduzir o âmbito de qualquer verdade sentida/instrumentalizada como opressão. A consciente retirada de peso pode ser reconhecida na leitura de sua objetualidade, nada consagrada ao discurso da funcionalidade, e sim ao da reversibilidade, mutabilidade. A crítica da representação exercida pelo humor dirige-se às circunstâncias e condicionantes de todo tipo que tornam pesado o ar que respiramos. Muitas das obras de arte se autoconferem de uma excessiva solenidade em sua exibição esgotadora, mitificante – o que a poética do artista responde com toda uma impostura visual[6].

 

O crítico cubano Ivan de la Nuez recentemente refletia como “o riso da arte sobre si mesmo aparece, então, como o primeiro passo para abordar mais tarde a demolição de todo o resto”[7]. A defesa do cômico como algo efêmero e evanescente, que não pode se repetir, orienta-se para ser considerado como “estado de exceção”. Apesar do gesto humorístico de Duchamp com o ready-made, é reconhecido que a modernidade era incapaz de rir de si mesma (Arturo Fuentes), e só em nossa época atingiu uma natureza sem remorsos ante a pompa, circunstâncias e religiosidade que até a própria arte exala em tantas coisas, para manter a idolatria do cubo branco ou seu sistema institucional de gratificações mediadas pela totalidade objetiva. O humor pode ser considerado como uma pedra de toque na poética do artista carioca, levando em consideração que não se trata de conteúdos aparentes e sim de uma estratégia conceitual, analítica, formal. Esta figura revela também uma distância quilométrica com seu par, a ironia, ainda que algumas vezes seja convocada em sua obra, por razões de estratégia tangencial (a ironia nunca é frontal) e potencialização crítica ante as convenções identitárias das coisas. A aplicação do humor, longe de ser um escapismo, é fonte de desestabilização semântica, instaura relações diferentes com o objeto/objetivo estético.

 

No essencial, o humor sempre facilita uma alteridade com seus cortes, fissuras, cesuras, interstícios e desvios. Não só descobre a banalidade (nua ou não) como a anulação da percepção da diferença das coisas; e como divisa de até onde pode chegar a comédia da arte em sua configuração ainda burguesa: de conceito, lugar, mediação… E é em seu entre-ver que se colocam sob suspeita categorias, estruturas, e descobrem-se desarmonias, se intercambiam. O humor, “como sintonia na desarmonia”[8], deve ser visto em Marcos Chaves como antena que conecta os fragmentos anteriormente referidos: cotidianidade-subjetividade-flaneurie, numa relação arte-vida que aproxima estes termos, mas não os confunde, pois ele não deixa que caiam ambos na armadilha de se fagocitar.

 

Portanto, e para continuar ativando os fios terras anteriormente mexidos, nada melhor que a análise pormenorizada de três trabalhos emblemáticos do artista: Logradouro, Morrendo de rir e a série Buracos.

 

III (Negra IRONIA amarela)

 

A falta de piedade da ironia determina que só seja salvo o que merece ser salvo, segundo uma velha anotação de Cioran. Pode-se dizer que, para uma grande parte da arte contemporânea, ela é um estimado recurso expressivo, em sintonia talvez com os tempos de hoje, mais pesados do que parecem. No vocabulário de Marcos Chaves, ela não é só presença constante, mas também estrutural, na medida em que permite apresentar um véu sobre o que verdadeiramente despe. O resultado é sempre algo com um disfarce transparente, onde quase tudo está à vista, mas só vendo.

 

A ironia visual continua, já na galeria (Laura Marsiaj Arte Contemporânea, Rio de Janeiro) na mesma semântica do amarelo, uma cor que já foi considerada como a cor da loucura, como a cor corporal por Kandinsky, mas também a escolhida pelos códigos urbanos de trânsito, como signo de atenção e isolamento. Uma fita negro-amarela de plástico, que, como se pode ver, é o ponto de partida desta ousada exposição, que começa sendo visual e acaba sendo extraordinariamente física. De fato, a instalação contém uma dúvida que ocupa a galeria toda: uma dúvida sobre a cor como sensação, como informação: “a cor não está nas coisas, mas na relação entre as coisas e nós” (Félix de Azúa). A aposta é clara: a obra é o lugar. Marcos Chaves sabe disto quando desloca significados do processo de comunicação nesta obra, que é um “jogo de linguagem” negro-amarelo.

 

Assim como uma leve memória do amarelo no artista remete a anteriores trabalhos de outra índole (série de objetos de Hommage aux mariages, postes de fila única de Sem título) cujo dominante tonal é reconhecível, a escolha da própria fita como material de trabalho lembra uma irmandade de apropriação com aqueles baldes oiticianos com luz vermelha, das ruas cariocas. Mas é sobretudo o diálogo interno com Raymundo Collares o que mais aparece nesta obra chamada Logradouro, pela vertente pop/construtiva que a composição desta instalação respira. Na verdade, podem-se escutar coisas comuns: certa melodia da cidade grande e signos de uma voragem urbana, embora a natureza das obras seja de seqüências diversas: naquele, mais temporal; e, em Marcos Chaves, mais espacial. A instalação não deixa de ser um caleidoscópio em que elementos pop/op/cinético/neoconcretos se articulam no olho sempre neodadá do artista.

 

É sobre a comunicação social deste elemento viário, sobre os códigos visuais e sua leitura que se assenta esta obra site specific, aliás, mais specific que site, pois suas fronteiras genéricas se situam mais ambigüamente: é uma instalação cujo conteúdo é a forma, e cuja substância é tão interior quanto exterior. É obra de galeria e obra pública ao mesmo tempo, sem saber nunca se o fluído dela está entrando ou saindo – o mesmo ponto energético que toda imagem tem, neste caso, situa-se numa parede como feixe ou sumidouro.’

 

Apesar de que a matéria-prima escolhida nesta obra não sai do plano, trata-se de uma obra de pura superfície que é todo volume, fazendo da mesma galeria uma caixa, um continente de ressonâncias conceituais. Se é famosa no artista carioca a apropriação de objetos e fotografias, quando não palavras, neste caso a apropriação é de um espaço da arte. O espaço expositivo é a obra. Se já numa ocasião anterior, neste mesmo espaço, o próprio Marcos Chaves trouxe para uma nova dimensão uma instalação feita no Castelinho do Flamengo, Rio de Janeiro, agora numa outra reviravolta, traz à tona uma diferente condição para o irreconhecível cubo branco. Ela é magnetizada para nossa presença, fazendo-nos parte da obra.

 

Uma obra que resgata uma vertente instalativa anterior, sempre preocupada com a des-naturalização representacional. De alguma forma, Logradouro é um trabalho pictórico sem pintura. A composição da instalação guarda também uma descontinuidade visual, ou melhor, respeita as geometrias do acaso, essa outra pedra filosofal do mestre dadaísta francês. A seqüência deste acaso geométrico guarda sua poção de humor própria, um elemento indispensável no artista, tanto como linguagem quanto como substância (veja-se o sonoro trabalho apresentado na atual XXVI Bienal de São Paulo).

 

Em Logradouro, as linhas de orientação de rua conduzem à galeria para descobrir que a obra são precisamente os próprios sinais. Tanto o material como o suporte e a mesma galeria entram aqui numa certa roda des-construtiva: a fita sofre uma intervenção e ela mesma intervém, é dona da seqüência e do espaço: o espaço da galeria torna-se seqüencial.

 

A operação do artista segue sendo combinatória: é a convergência da intervenção e da apropriação ao mesmo tempo: por meio dos signos, mexe em nossos referenciais. O exercício inerente desmonta um sistema de representação viário com outro uso de linguagem da mesma imagem: a “des-convenção” de uma fita urbana. A estratégia “des-sublimadora” de Marcos Chaves ganha um paradoxo a mais, sobretudo quando o próprio artista não teme reconhecer que “o sublime pode chegar através do humor”. O que acontece com Logradouro. E não esqueçamos que a ironia adora adivinhar qualquer crise de representação, e até as nossas convenções visuais e ideológicas mais veteranas.

 

O olhar que persegue este trabalho é dilatado. É um olhar de visita, ou melhor, a visita do olhar. As chaves artísticas de Marcos são essas (já estão no nome, como descobriu a tempo Ligia Canongia). Encontrar caminhos onde há buracos, encontrar buracos onde há objetos, pedaços, fragmentos, figuras onde há cores. Ou como pede um aforismo de Licthenberg: “Novos olhares para velhos buracos”.

 

IV (Quando o olho ri, ou vice-versa)

“Tristeza demasiada ri. Riso demasiado chora”.

                                               William Blake

 

Para quem não conhece, mas também para quem conhece bem a obra anterior de Marcos Chaves, construída sempre sobre os parâmetros da apropriação e da intervenção, a chegada desta obra à Bienal não deve deixar de surpreender, pois a reconhecida chave do humor de seu trabalho, como recurso sinônimo de linguagem, aqui não se apresenta só como elemento, senão como fundamento, como uma declaração estética. O que à vista da seriedade de grande parte da arte última – às vezes de uma sagramentação conceitual que dificulta até o passo do ar – é algo mais que oportuno, faz que seja um trabalho mais procedente do que nunca.

 

Como não podia deixar de ser, Morrendo de rir é um trabalho fronteiriço não só pela sua natureza mista e pela criação de um espaço híbrido, como também pela semântica não delimitada das imagens: de dor, de grito, de gozo? Marcos Chaves tem escutado este paradoxo intrínseco do riso – cujo extremo é a gargalhada – tão “essencialmente humano” e “essencialmente contraditório”, segundo confessava Baudelaire, para fazer una verdadeira instalação-colagem, onde as partes da obra são superpostas, ligadas como se fossem camadas, também levadas a seu extremo: silêncio, imagem, espaço e riso.

 

Se um dos sonhos reconhecíveis das instalações é sua aproximação à vida, às questões da condição humana, aqui ambas as partes se fundem numa terceira que é o público, como se fosse um “fio terra”. De fato, o equilíbrio/diapasão desta instalação visual-sonora ou, dependendo da ordem que o visitante acione, sonora-visual, repousa nesse triângulo: as imagens do artista-as gargalhadas-os visitantes. Em virtude desta estrutura da obra, os visitantes convertem-se em médiuns, pois são eles quem sintonizam a gargalhada visual e a sonora, com o acrescento da sua, muito possivelmente. Os espectadores são os que ativam a obra, sua seqüência. Uma seqüência, aliás, que nunca está parada, tanto pelo movimento da imagem da boca-gargalhada, como pelo o som que colabora como movimento: a imagem remete para uma trilha e o som se faz imagem.

 

O silêncio oficial da arte se pode quebrar com a obra, quando pessoas rindo transgridam seu espaço sonoro, e até a própria narração, pois a obra não é estática, como podem enganar as fotografias aqui objetualizadas, é continua: refaz-se em cada visitante que chega, em cada riso ou gargalhada nova, como um moto-contínuo da obra, em que se pode descobrir um heterodoxo e vivo componente minimal, pois ainda que o motivo se repita – a forma dificilmente –, às vezes o efeito e a causa podem alterar-se nela. Assim, se a metade da obra é do domínio do público, é porque é ele quem fala a última palavra, ou, melhor dizendo, a última gargalhada, já que a obra tem essa vontade de ensaio aberto, esse gume.

 

Morrendo de rir faz parte de um vocabulário artístico como o de Marcos Chaves, cuja maior figura continua sendo a ironia: da arte, do espaço da arte e do mesmo artista; e aí estão os jogos de formas que se podem intuir do riso e sua gargalhada, como precisamente o contrário do quadrado da sala e dos próprios puffs, ou as amontadas imagens do rosto do artista, como o maior exemplo para equacionar o campo de tensão de um trabalho que se aproxima a essa vertente da arte acústica, mas que sobretudo põe em pane alguns de nossos créditos estéticos, pela junção irônica do olho e do ouvido sobre um título que promete sua parte.

 

V (Do avesso de um buraco, ou outra fronteira)

 

Há obras que criam as suas fronteiras, ou melhor, as fazem convergir, não as eliminam, até as re-dimensionam, sem nenhum espírito alfandegário, é obvio. Sobretudo num contexto no qual o discurso fronteiriço, culturalmente correto de nossa época, saúda isso nas suas aparências comerciais. A mitificação a qualquer preço do termo, desta condição, como um item a mais da globalização costuma vir junto à palavra híbrido. No caso da série dos Buracos de Marcos Chaves, acontece este paradoxo, mas de forma crítica, atenta, lúcida, pois no lugar de saber que estamos diante de uma coisa definida, codificada, estamos sempre em trânsito, numa reflexão que não se fixa num lugar, onde o chão das fronteiras se move, em vários de seus sentidos. Talvez porque a série, já desde o seu ponto de partida, convide a isso, a compartilhar diferentes pontos de vista, deslocamentos que mudam de estratégia, operações conceituais que já estão embutidas na matéria visual escolhida, trabalhada e trasladada.

 

Esta mesma condição fronteiriça se explica também pelos vários limites em convergência, pelo fato de a série Buracos ser ao mesmo tempo várias coisas indistintamente: é escultura coletiva, instalação pública, intervenção popular, também apropriação conceitual, ready-made urbano, fotografia e, para finalizar, obra política, e não necessariamente nesta ordem, porque aqui não importa tanto a suma como a sua multiplicação. Contudo, cada buraco de rua carioca levanta não só uma peça tridimensional de aviso para os transeuntes, e sobretudo para a circulação viária, como registra uma incontestável improvisação que está além e aquém do horizonte povera ou do discurso dadaísta, talvez em seu meio fio mais agreste.

 

Como verdadeiras fantasmagorias urbanas então, Marcos Chaves tem resgatado as intervenções locais de rua como aparições kurtshwitersanas. Pois cada buraco é uma falha na calçada do poder político da cidade, uma fresta simbólica que se abre, homenagem popular ao perigo da política que falha e que é fissura no imaginário social. Cada buraco é uma intervenção que joga com as presenças e as ausências (de chão, de vazio, de estrutura, de sinais), que é lida com uma ironia cúmplice e mordaz. Assim como não é a primeira vez que o artista se aproxima com olhar transversal e humorístico para o imaginário urbano de sua cidade, desta vez o itinerário estético é outro. Como se pode intuir, nesta cartografia carioca não se tem uma unidade de território, pois ela é aleatória, mundana, nômade. À elevada suma de circunstâncias, une-se a superposição de elementos que concorrem para umas obras que deveriam entrar também no simbólico Museu do Acidente de Paul Virilio: acidente, acaso, trânsito, colagem, improvisação…

 

A outra dimensão que o artista explora se encontra no jogo da linguagem – de ecos magrittianos – estabelecido no simples título, em que o buraco é uma representação virada do avesso, e um iceberg da representação, cujos sentidos abrangem outro espaço que o visível. Aqui, dito no estilo da língua coloquial, “o buraco é mais embaixo”. De novo, a linguagem verbal e a imagética se cruzam, contornam seu abismo. Como diz numa ocasião Mel Bochner: “Há um imenso abismo entre o espaço dos enunciados e o espaço dos objetos”[9]. E ainda mais quando o objeto visa ter outros objetivos, saltar seu logos, e o enunciado atinge outro espaço discursivo, quando eles não se encaixam nem cômoda nem categorialmente. Por exemplo, a mesma fotografia, utilizada cada vez mais por Marcos Chaves como suporte, tem em si essa divisória, esse olhar em fresta que permite levantar suspeitas sobre o real e a sua ficção, sobre a natureza da imagem e a sua ironia, sobre seus códigos. Sendo assim, a poética deste trabalho nasce de uma ruptura que é tematizada entre o mundo real, a escultura que o modifica e o registro em imagem fotográfica. As fotografias dos buracos são auto-representações, em que objeto e idéia se acasalam em sua matéria-prima (a peça levantada na rua) e a sua categoria de pensamento (o registro conceitual e fotográfico), mas para dar em tautologias perversas, que não param de incidir em vários campos de entendimento. São outros sinais na pista. Daí que nesta coleção de buracos se pode ver muito mais do que se pensa.

 

VI (Desdobramentos, ressonâncias, devires)                                   

 

Depois de aproximar-nos de três trabalhos paradigmáticos na trajetória de Marcos Chaves, retomamos aquele fio condutor de maior âmbito, para seguir algumas das sendas abertas pelos seus vários desdobramentos (nunca oferecidos como remakes e sim como devires), num artista no qual prolifera o sentido da série como continuidade conceitual, mas também como dom de ubiqüidade imagética na qual se trabalha. Assim, sobre a instalação de Logradouro, inaugurada em diversos espaços expositivos (Rio, Vitória, São Paulo) sempre com diferentes metabolizações e adquirindo novos diálogos com a arquitetura, há que se registrar a existência de outras significativas experiências paralelas, que se distanciam da matriz originária. Como é o caso da versão oferecida na Suíça, onde a linha contínua negro-amarela atravessa o espaço interior/exterior do prédio, querendo revelar uma outra sinuosidade de leitura visual, fora da codificação de trânsito urbano que tem a própria fita plástica escolhida como único leitmotiv. O que acontece também de forma sucinta na obra apresentada na mostra coletiva, Arquivo Geral (2006), em estado de instalação, e onde a metalinguagem obtida pela separação das cores da própria fita atinge uma outra suspensão imagética, uma dobra a mais do primeiro Logradouro.

 

A outro registro bem diferente pertence a colaboração cênica para um balé (Teorema, 2006), em que ainda se produzem amplas transformações cinético-visuais, compositivas, e que re-situa as equações da fita/binômio de cor em amplificação diferente, em interação com a dança, com as possibilidades do movimento – dupla dança: a dança é exercida sobre a própria coreografia negro-amarela do trabalho. Porque o cenário feito pelo artista participa de uma natureza visual em estado de dança, cujas formas se dimensionam diferentemente pela participação lumínica, pela interação dos bailarinos urbanos (algo que de alguma forma já acontece desde o começo deste trabalho em todas as suas configurações, no estreito diálogo que estabelece com nossa passagem, com nossa inscrição). Aliás, a noção de passagem, tão benjaminiana, inscreve-se na poética de Marcos Chaves com toda propriedade (e algo disso já vimos aplicado na condição de seu trabalho “etnográfico” e de flâneur que registra a sua atuação artístico-mapeadora). Uma leitura topográfica e visual da cidade quando deixa de ser paisagem domesticada e favorece um “olhar alegorista” (Nelson Brissac), à deriva, ao encontro de outros sinais…

 

No mesmo sentido, se procuramos uma ressonância de outra obra anterior, encontramos a vária descendência de Morrendo de rir. São alguns trabalhos em que a imagem do artista sai novamente des-mitificada, em que a função do retrato atinge características de mapa crítico de uma subjetividade em dança. Neste âmbito, inclui-se o vídeo com referências mapplethorpeanas (Sem título, 2005), cuja ironia ultrapassa qualquer discurso egolátrico aparente: nele, o artista apresenta-se imóvel e sério, com uma bengala de apoio – de referência cúmplice (pisca olho) com uma conhecida imagem do fotógrafo norte-americano –, que está coroada com uma caveira. Em seguida, esta mesma bengala se transforma em boneco/chocalho infantil, de riso-buzina macabro. Um vídeo que em sua concentração temporal se aproxima a uma gag cinematográfica (a dilatação conceitual quase nunca é narrativa em Marcos Chaves, com perdão da moda, é mais concentrada), e no qual se respira também certo perfume mexicano (à moda de José Guadalupe Posada), em que a morte sempre pode rir de si mesma (o título de Morrendo de rir aponta para essa mesma combustão). O que acontece também com o outro vídeo minimalista, em que a boca do artista, coberta por uma máscara sorridente, flutua entre as suas transformações e a relação estabelecida com a parte superior do rosto. Aqui, o sorriso-gesto vira seu próprio antídoto. Essa partição subverte nossa tranqüilidade, e volta a colocar o viés cômico na primeira linha, numa fluência corrosiva de nossa contemplação. O número de caras/caretas exibidas pelo artista sintoniza com a condição intrínseca do humor: mostrar o máximo de interpretações, como a sua parcial máscara facial sintoniza com a etimologia da gag que significa amordaçar, colocar uma coisa na boca para não poder falar.

 

Deste modo, a importância da máscara (já salientada por Ligia Canongia[10]) é utilizada de forma literal nestes últimos trabalhos (que ostentam certa dose de inusitado humor negro, e de tensão eros-thanatos). Por outro lado, também remete ao personae do teatro, à pantomima que gosta de eliminar os limites da presença, à figuração alteregóica que percorre muitas obras do artista. Há um perfil heteronímico/de alteridades dentro de uma mesma subjetividade, que afeta toda esta série de trabalhos em que a identidade é colocada em questão, rebaixada de seu pedestal, analisada sotto você, contrastada.

 

De novo, o humor não é alheio ao terrível (e é bom lembrar outro ponto de arranque, concretamente dos buracos, na instalação fotográfica LandEscape). Naquela obra, a ironia, quase lúgubre, apontava para o destino fugaz que marca a nossa andadura existencial, transformada em memento mori pela fotografia.

 

Já as fotografias de Próteses (um trabalho em andamento) guardam certo eco dos buracos e dos registros. Elas voltam a nos situar num território visual duvidoso, onde a ambigüidade é re-trabalhada como ambivalência. São fotografias que se apropriam/constroem uma situação urbana de remendos arquitetônicos, “naturezas mortas” urbanas que jogam com a impossibilidade das belas formas, apesar de serem, por outro lado, composições construtivas. Achados urbanos que defendem sua tese visual de próteses (a importância dos títulos no artista), em detalhes ampliados que sonham com a quimera do igual. Retoma-se aqui a interseção entre obra pública, apropriação e ready-made fotográfico, que inclui uma intervenção popular, manual e um registro conceitual.

 

A série, meio inédita, tem a ver com a aparência das imagens – ou seja, com seu disfarce –, com o jogo com o duplo (e com o duplo sentido), por meio de um olhar irônico (e amável), sobre o caráter da mimese, aplicada ou transportada a um campo tão utilitário quanto as formas que fogem do falso sem chegar a ser o verdadeiro. Rir do bem feito é também rir dessa intenção mimética – algo absolutamente primordial na poética do artista. Porque, além do ascético hálito lírico presente (como acontece em imagens intervindas de Geraldo de Barros), não existe aqui uma linha divisória entre a ficção e o real da imagem, já que as fotografias mostram, precisamente, o jogo exato desta convergência conceitual.

 

Finalmente, pode-se fazer um caminho inverso, contra-corrente, e lembrar então que, na derivação das fotos apresentadas de Sem título, encontra-se o site specific Ecléctico (feito no Castelinho do Flamengo, Rio), a sua verdadeira raiz. Ao conjunto de fotografias que serve como registro de qualquer ação artística não permanente, une-se o passo anterior, de novo potencializado. O jogo imagético que se produz entre ambos os trabalhos, as fotografias e a intervenção no prédio, é de uma circularidade interna intensa, efetivada pela afinidade entre a condição fotográfica (seu estágio congelado faz girar a memória das imagens) e a ação realizada, assim como pela mesma diferença de atividades. A fixada configuração temporal das fotografias parece devolver à eternidade tanto a intervenção quanto seus resultados.

 

Deve-se considerar como uma característica transversal deste trabalho – e da poética do artista – a sua função desauratizadora. (Aliás, só quando a arte perde a sua aura é risível, enuncia o artista Rubem Ramos Balsa). Aqui, mexe-se na aura consagrada do prédio, em sua condição eclética, para a qual se desenvolve uma carnavalização da arquitetura: site specific que afeta um espaço e um tempo carnavalizados em seus novos atributos visuais. Assim, Marcos Chaves re-anima uma decoração cansada com outra fantasmagoria visual. A mínima, sutil e diferente intervenção nos rostos – numa arte da agudeza, com finos witz[11] – concede à estatuária inscrita no prédio um ar macunaímico, irreverente, em que a mascarada de referências/denotações delata a falta de um predominante e sistêmico eixo central. E não é difícil reconhecer nisto, outra vocação da poética do artista: concentrada pelo detalhe, instaura trabalhos para funcionar como falhas sistêmicas. Não é à toa que pertence à estirpe de artistas brasileiros que reconhecem esse lado macunaímico de metamorfoses, irreverências, presente também em Nelson Leirner, Marepe, Artur Omar ou Vik Muniz.

 

Como se houvéssemos viajado, então, numa órbita de elipse dentro da poética estética de Marcos Chaves, nossas perspectivas mudam, talvez agora sejamos mais conscientes do curto-circuito produzido pelas imagens.

 

VII (Exit com coda)                                                                         

 

Se existe uma demanda em toda a obra de Marcos Chaves, em sua própria dispersão e hibridismo, é aquela que obriga a um maior exercício de atenção visual, quer dizer, que obriga a baixar o volume da monumentalidade estética, precisamente numa época em que os maximalismos visuais não só são uma parte emblemática da sociedade espetacularizada, como dos requerimentos de certa cena política que precisa da imagem, sobretudo da arquitetônica, para iludir os cidadãos na base de outros jogos visuais. Reduzir, então, a contaminação visual, tão oficializada pela propaganda sistemática, e ficar atento ao jogo em que a semântica plástica lida com seus signos mais abertos permite re-colocar em seu lugar aquela experiência empobrecida que nos é apresentada, e vendida, como nosso inequívoco e perverso presente. Arte e vida continuam seu litígio, distâncias e aproximações, estratégicas ou mistificadoras. Pois não é por sonhar com o território da comunicação, ou com a produção e propriedade de meros objetos/peças/obras – como alerta Mario Perniola –, que a arte pode se confundir com a vida, ou simplesmente se dissolver nela. Neste sentido, a simplificação mediática e econômica é maiúscula, tão naturalista como mimética. Daí a pertinência lateral da prática artística de Marcos Chaves, esse trabalhar às margens das operações banalizantes. Como outra ecologia estética, a própria escolha do humor como recurso lingüístico não é nenhuma brincadeira, é uma estratégia oblíqua que se distancia da grandiloqüência e da aparelhagem mitificada do próprio objeto artístico. É uma âncora no terreno do necessário, e também uma chamada para a irreverência (que não chega nunca à crueldade) de outra leitura. O que tem a ver com o horizonte e estatuto da nova obra de arte que está ou deverá estar em curso na próxima contemporaneidade, assumindo um papel antropológico diferente, sendo uma obra mais pública, mais interativa, mais crítica de sua própria representação simbólica… Nisto, a poética do artista do Rio de Janeiro sabe escolher seus merecidos alvos.

 

O trabalho sobre os códigos, os sinais e alfabetos aposta nos jogos de linguagem, em mexer no bastidor cheio de obrigações culturais de que se compõe nosso prontuário vital. (Como fez outro Marcel, talvez o mais próximo de nós a estas alturas, Marcel Broodthaers). Assim, “através do arranjo e alteração das relações entre alfabeto, código, denotação, objeto, Broodthaers abeira-se de um re-arranjo utópico radical – o do próprio mundo oposicional e binário, tal como o conhecemos”[12]. É este grau de interferência o que sempre está se movendo, exceto no trabalho artístico que queira se converter em estátua de sal. A obra de Marcos Chaves é, portanto, uma sismografia artística que trabalha a perplexidade visual, sempre a partir de um âmbito cotidiano, confessionalmente próximo. Em consonância última, encontra-se o site-specific, quase de bolso, Benvindo (2006), composto por uma porta inusitada num teto que desarranja nossas expectativas visuais, sensoriais, provocando uma vacilação conceitual em nossa apreendida semântica (ainda mais quando se trata da apropriação arquitetônica de um buraco qualquer existente entre andares). Ou a sinestesia na roda do sensorial que se vem produzindo ultimamente em vídeos e instalações, em que a parte acústica é parte estrutural, e cujo exemplo mais “puro” é Laughing container (2005), instalação urbana no País de Gales de um contêiner fechado que guardava oculta toda classe de risos-ruídos em seu interior hermético (também irmanando-se com aquele ruído secreto introduzido num objeto duchampiano de 1916). De alguma maneira, o que vale em ambos é o cifrado enigma do vedado, seja no obscuro ready-made (em Duchamp), ou na situação criada (em Marcos Chaves), em que o continente (contêiner) e conteúdo (riso) viram a mesma coisa, e se consegue fazer de uma instalação um rara situação objetual.

 

A imagética de Marcos Chaves corresponde a outra janela de percepção, erosionadora desses créditos e legendas que rezam seriamente sobre o obrigatório correlato com a objetividade mais hipotecada pela razão mais velha. Até a pompa da arte e suas circunstâncias são olhadas de soslaio, seja vendo, lucidamente, a adoração da ex-aura da obra, autoria ou de sua tradução onipresente como quase exclusivo produto de mercado. A trajetória de Marcos Chaves apresenta uma latitude aconselhável, a sua própria onda de ação: uma produção de paradoxos visuais, a favor de uma crítica negociação com o real. Um convite ao estabelecimento de novas relações cognitivas que sempre se rege pela diversidade de aproximações, todas marcadas pela singularidade como melhor estratégia para esse entrechoque cada vez mais necessário de significantes visuais-significações conceituais, se a intenção é fugir do universalismo de turno. Daí que as suas armadilhas visuais funcionem como suspeitas do que vive no império do recalcado.

 

Como naquela apropriação fotográfica-intervenção do artista numa porta giratória da Tate Modern de Liverpool, que muda suas coordenadas semânticas (TUO/OUT, 2001), o trabalho feito pelo artista sobre os signos e os códigos não só patenteia a sua poética metalingüística, auto-reflexiva e de intervencionismo crítico nos planos da representação, consciente das contingências situacionistas, como anuncia, com o melhor fair play, nosso lugar nesta conjugação cúmplice, cuja saída bem pode ser a entrada.

 

Rio de Janeiro, fevereiro de 2007

 

Obs.: O presente ensaio aproveitou o alimento de três textos sobre a obra do artista (III, para Logradouro, janeiro de 2002; IV, para Morrendo de rir, março de 2002; e V, inédito, para a série Buracos, abril de 2006), incorporados com algum leve retoque neste móbile de sete partes para Marcos Chaves.

 

 

 

Notas

[1] Outra ironia que pesa sobre este âmbito é a reclamação do próprio Duchamp sobre a institucionalização de seu gesto irreverente com os ready-mades (feita em 1962, sem ver ainda as operações dos simulacionistas), já convertidos em “valor estético”: “Eu lancei na cara deles o saca-rolhas e o vaso sanitário como uma provocação, e agora ficam admirando-o como o belo estético”. Contra esta máquina mimética, a arte não se libera de seu combate, pois “trata-se com certeza de uma maquinaria ideológica, de pressão, que atrai para a redundância, a repetição e a retórica, sendo cultural, para os lugares comuns da cultura, sendo estética, para o cânone disciplinar ou interdisciplinar dos variados suportes artísticos”. (NAVAS, A. M. La maquina mimética. Revista Lápiz, Madri, n. 230, fev. 2007). E isso significa para qualquer atividade estética assumir o conflito com a linguagem, mas também com o meio cultural, as instâncias legitimadoras…

[2] FIZ, Simón Marchán. Del arte objetual al arte de concepto. Madri: Ed. Akal/Arte y Estética, 1986. p. 169.

[3] REGUERA, Galder. La cara oculta de la luna. Revista Lápiz, Madri, n. 218, p. 50, dez. 2005.

[4] BOURRIAUD, Nicolas. Joseph Kosuth entre les mots. Artstudio, L’Art et les Mots, Paris, n. 15, p. 99, 1989.

[5] Se no campo da fotografia dos últimos quarenta anos virou hábito esta foto-texto, a extensão desta prática tem ultrapassado anteriores limites: Robert Frank, Duane Michals, John Baldessari ou Jochen Gerz, Bárbara Kruger, Victor Burgin, Sophie Calle, Rogelio López Cuenca, Gillian Wearing, Leonel Moura, Hamis Fulton, Kem Lum, Jorge Macchi, entre outros.

[6] Marcos Chaves, como seu companheiro de geração Barrão ou Eduardo Coimbra, ou como Guto Lacaz, Nelson Leirner, dentro de Brasil, ou Joan Brossa, os irmãos Chapman, Martin Parr, Sarah Lucas, David Hammons, Maurizio Catellan ou Erwin Wurm, pertence à família dos artistas que riem, que utilizam o humor como praxe eficaz de seu trabalho, como recurso ou registro. E é sintomático que duas publicações internacionais, recentemente, tenham dedicado monográficos ao tema ([W] Art, Porto, n. 001, 2004; Exit, Madri, n. 13, 2004).

[7] DE LA NUEZ, Ivan. La risa del arte. El País, Babelia, Madri, p. 16, 17 fev. 2007.

[8] FUENTES, Arturo. El ready-made como produto dum estado humorístico. Revista [W] Art, Porto, n. 001, Humor, p. 57, 2003/2004.

[9] BOCHNER, Mel. Considerações em torno da reinstalação de A theory of sculpture. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1999. p. 25.

[10] CANONGIA, Ligia. Marcos Chaves – Arte como máscara. Rio de Janeiro: Laura Marsiaj Arte Contemporânea, 2005.

[11] Termo sinônimo da perspicácia, insight de engenho, usado por Gloria Ferreira no folder de Eclético, Centro Cultural Oduvaldo Vianna Filho, Rio de Janeiro, 2000. A própria ironia acostuma funcionar como um efeito que se da ao sentido.

[12] VIDAL, Carlos. Democracia e livre iniciativa/Política, arte e estética. Lisboa: Fenda Edições, 1996. p. 105.