Entrevista com Marcos Chaves, para a coleção ARTEBRA
Rio de Janeiro, 26/11/2006.
Casa do artista.
Entrevistadores: Glória Ferreira e Lula Wanderley.
Ouvintes: Luiza Mello, Marisa Mello e Débora Monnerat.
Lula Wanderley: Para iniciar, tenho uma pergunta subjetiva e pessoal: o que significa para você ser artista? O que significa ser Marcos Chaves?
Marcos Chaves: Eu estava pensando nisso hoje. Por que fui virar artista? Minha família é toda de advogados, de áreas muito diferentes das artes. Desde pequeno, procurei estar onde me sentia mais confortável e acho que esse lugar é o ambiente da arte, onde posso ter diferentes interpretações dos fatos. O lugar da arte não é o pragmático, é o subjetivo. Sempre gostei dessa área da subjetividade. E o mais próximo disso que eu tinha ou era a arquitetura, por parte da minha irmã, ou a relação com meus tios que trabalhavam com cinema. E se eu não tivesse seguido por esse caminho? Acho que chegaria nele do mesmo jeito. Faria outra coisa, mas sempre tentando pensar na diversidade, nas diferenças, na poesia.
Glória Ferreira: Mas hoje você já é um artista, com uma obra na praça…
Marcos Chaves: Queria estar na praça realmente.
Glória Ferreira: Nas diversas críticas sobre seu trabalho, com suas diferenciadas maneiras de abordá-lo, encontramos alguns tropos tais como o humor, a intervenção, a filiação duchampiana e a cultura popular. Como você situaria o seu trabalho em relação a essas críticas?
Marcos Chaves: Concordo que esses quatro pontos que você citou fazem parte da minha poética. Contudo, na realidade, não fico querendo fazer cada uma dessas coisas como um carro-chefe, mas sim como instrumentos para chegar a um lugar subjetivo. Posso usar humor, política, ou humor como atitude política.
Acho que trabalhar com o popular também é política. Me interesso pela política, pela psicologia, em como o mundo pode ser apreendido pelas pessoas e em como a gente dilui esse mundo. Porque o artista tem a função de diluir, decantar e propor.
Quanto à brincadeira da praça, me interessa mais trabalhar na praça do que na galeria. Quanto mais na praça eu estiver, melhor.
Glória Ferreira: E o que você chamaria de “praça”?
Marcos Chaves: Arte pública. Não sei o quanto estou trabalhando para isso, mas fico pensando que não quero dialogar apenas com o sistema de arte. Quero além disso, quero trabalho na praça pública, ao invés da galeria fechada.
Glória Ferreira: Como é sua experiência com esse tipo de ação?
Marcos Chaves: É pequena. Mas nos últimos cinco anos realizei alguns trabalhos com características mais públicas, como o Eu só vendo a vista nos relógios, que aconteceu naturalmente e me deu um retorno impressionante. Fiquei muito atraído por isso. Fiz no ano passado um trabalho[1] sonoro que fazia parte da minha instalação na XXV Bienal de São Paulo. Era um contêiner fechado em uma rua no centro da cidade de Cardiff, País de Gales, de onde saía o som de risadas. Isso foi surpreendente, as reações foram as mais variadas. Fiquei muito feliz. Não acho que a arte é para circuitos fechados. Pela quantidade de possibilidades, de informação e comunicação que a gente tem hoje, não dá para restringir, e sim expandir.
Glória Ferreira: Como dito acima, um dos traços de seu trabalho seria a filiação duchampiana. A sua primeira exposição coletiva foi em 1984, ano do boom da pintura aqui no Brasil, por exemplo, da exposição Como Vai Você, Geração 80? Como se dá o seu contato com essas questões, até porque as referências duchampianas são muito diversificadas?
Marcos Chaves: Uma vez falei brincando que tem muito bagulho no mundo para criarmos mais bagulho. Podemos aproveitar o que já tem aí. Eu produzo bagulhos, mas produzo pouco. Tenho visto que os artistas crescem no mercado e seus trabalhos crescem de tamanho igual. Eles vão ficando importantes e fazem bagulhos maiores. Não gosto dessa idéia. O legal do bagulhão no meio da rua é que as pessoas interferem mesmo, e se as pessoas não gostarem vai dançar. Não importa quem seja o cara. Não importa que seja o Richard Serra. Não sei se isso é certo ou errado, mas a cidade funciona assim, os organismos vão se organizando. Pode ser erudito ou popular. Também não me interesso pela erudição só pela erudição. Não me interesso pelo popular só pelo popular. Gosto da mistura e do que sai dessa mistura.
Lula Wanderley: Acostumei-me a ver seus trabalhos sempre esperando o humor. Vejo humor/ironia até onde, provavelmente, não é sua intenção declarada de ter, pois o humor parece fluir de você naturalmente. Por exemplo, essa sua impureza, essa mistura de linguagens (vídeo, performance, objeto) tem alguma função crítica irônica? Existe ironia por trás dessa impureza poética?
Marcos Chaves: O trabalho vai se construindo naturalmente, sempre procurando a dobra, o viés. A ironia e o humor possibilitam falar de algo com concisão e falar várias coisas ao mesmo tempo. O humor abre caminhos. Às vezes, você pode rir de algo, mas aquilo pode não ser tão engraçado assim. O humor pode nos fazer parar para pensar.
Glória Ferreira: Você chegou a pintar?
Marcos Chaves: Cheguei a pintar quando voltei da Itália, quando fui assistente do Antonio Dias. Fazia articulações, colava coisas na tela, escrevia. Não via a pintura somente como cor e luz. Era um exercício de linguagem. Mas nunca consegui ficar contente com o resultado dessas experiências. Era uma passagem.
Lula Wanderley: Mas foi um ponto de partida?
Marcos Chaves: Foi ponto de partida para eu saber que não era aquilo.
Glória Ferreira: Sua primeira exposição guardava relação com a pintura?
Marcos Chaves: A minha primeira individual foi na Macunaíma, Funarte, em 1988. Havia questões da pintura, mas sem tinta. Eu abria sacolas de supermercado de papel, dobrava, vincava, colocava ilhoses, furava. Ainda me mantinha no plano, mas a montagem refletia uma preocupação espacial. Era meu aprendizado, porque eu vinha da arquitetura. Logo depois, é óbvio, fui para 3D e instalação.
Lula Wanderley: Nessa época, alguma exposição ou trabalho te impactou?
Marcos Chaves: Claro que sim, o Fluxus na Bienal de São Paulo. A Bienal do Fluxus foi antes da pintura.
Glória Ferreira: Foi em 1981, acho, com uma curadoria do Julio Plaza sobre Arte Correio.
Marcos Chaves: Essa Bienal foi importantíssima para mim. Além dos livros que a Funarte publicava e do diálogo com os meus amigos artistas. Estávamos em formação.
Glória Ferreira: Embora seja quase sempre ressaltada a presença de uma dimensão racional em seu trabalho, em uma entrevista[2] você fala que a intuição é muito importante para você, que é mais importante do que a articulação. Como essa relação se expressa em seu trabalho?
Marcos Chaves: Na realidade, são duas coisas distintas, a intuição e a idéia. Gosto de juntá-las de alguma forma. Não sei em que lugar. Porque, na realidade, escolher o caminho do acaso ou da intuição também pode ser uma idéia, pode ser um procedimento. Porque quando você lê uma intuição, está lendo-a racionalmente também, está transformando uma coisa em idéia. A maneira mais fácil de falar disso é fazendo os trabalhos. Eu não consigo dizer onde é que se juntam essas duas coisas distintas, mas próximas. Uma é instrumento da outra.
Lula Wanderley: O Eu só vendo a vista é um trabalho, para mim, muito emblemático. Porque ele contém duas vertentes de sua obra que me tocam e que me fazem refletir. Uma delas é que você, em alguns momentos, não se apropria de ou desloca apenas objetos cotidianos, pois eles trazem em si toda uma paisagem urbana. Quando você mostra os banquinhos, imediatamente eu vou me lembrar de quando ando no Engenho de Dentro e vejo os banquinhos dos apontadores do jogo de bicho e suas cadeiras improvisadas. A outra seria a relação, que eu acho muito forte, que você faz entre a palavra, a imagem e o objeto.
Se eu condensasse todas essas paisagens urbanas em uma única exposição (as cadeiras, os buracos, as fitas de interdição), eu diria que Marcos não anda pela rua como um pedestre. O pedestre de hoje anda com o olhar todo esquadrinhado, você anda com uma temporalidade completamente diferente para perceber os detalhes das coisas. Eu diria que o andar é a verdadeira obra de Marcos. Você já pensou em uma obra em que o andar seja o trabalho?
Marcos Chaves: Sim, e não sei como resolverei essa questão. Todos os vídeos que fiz até hoje foram com câmera parada. Tenho pensado mais em movimento.
Lula Wanderley: Uma outra pergunta é que nessas paisagens urbanas presentes na sua obra há muitas imagens em que fica clara a sua apropriação da descontinuidade do espaço urbano. O buraco da rua é uma descontinuidade. Ele quebra a natural sensação de totalidade que sentimos da cidade quando andamos. A fita amarela é sempre um dispositivo de impedimento de prosseguir o andar. Lembro-me, também, das fotografias que você faz das sutilezas dos remendos das calçadas e muros. O que me dá a sensação de que você, poeticamente, reconstrói a percepção da totalidade que sentimos da cidade. Nesse sentido, você é um construtor de cidades – um operário.
Marcos Chaves: Nesse caso, entra um procedimento que tem a ver com o texto no meu trabalho, com o andar, que é procurar novos caminhos o tempo todo. É um absurdo a gente andar no Rio de Janeiro e não perceber que a cidade é cheia de geladeiras com roda. Mas eu demorei muito para perceber isso. Os carros dos ambulantes são carcaças de geladeiras com rodas acopladas. A gente parece que está cego, que não vê. Aquilo é surrealista. Mas ninguém vê, não sou eu que vejo demais. Estamos todos vendo de menos.
Glória Ferreira: Iria por aí a sua visada política? A idéia do humor como uma economia da dispensa afetiva, mas também de um puxão de orelha…
Marcos Chaves: Com o trabalho dos bancos, Lugar de sobra, estou procurando outra leitura da cidade. Parece que a gente só vê o que quer ver. O artista tem quase obrigação de ver mais e de convidar as pessoas para olhar essas outras coisas. É o meu trabalho junto com o seu, junto com o de outro artista, cada um olhando para uma coisa, cada um se especializando e aprimorando o olhar. Isso é o que faz o todo andar, evoluir.
Lula Wanderley: Tem um artigo de que gosto muito do Alex Varella[3], na revista Errática[4]. Ele fala (pelo menos assim eu o traduzo) que o andar estético-temporal que revela a cidade é deslocado para o campo da arte (experiência dos surrealistas, dos situacionistas) quando o caminhar urbano de hoje passa a ser tencionado pela urgência da vida prática cotidiana.
Marcos Chaves: O trabalho é construído na pressa do cotidiano, a partir da observação das relações entre os habitantes, os objetos, e da relação entre eles, no ambiente urbano.
Lula Wanderley: Quero fazer uma pergunta sobre um aspecto do seu trabalho, também está presente no Eu só vendo a vista, que me interessa muito: a fusão que você faz entre as palavras, os objetos e as imagens. Se eu pego uma série sua, como Hommage aux mariages, o título (a palavra) determina o olhar que a gente tem sobre o objeto e o lança em múltiplas leituras. O que eu gosto muito nesse trabalho Eu só vendo a vista ou, mais ainda, em Não falo duas vezes é que neles você toma um caminho inverso, mais sutil, mais forte. Neles, o título está em primeiro plano. É o objeto (o espelho ou o postal) que determina as múltiplas leituras da palavra. Tudo como se eles fossem livros em que o suporte não apenas contém as palavras, mas determina a sua leitura. Você é atento às palavras? Tem experiência no campo da literatura?
Marcos Chaves: Nos trabalhos. Eu acho que falo mais do que escrevo.
Glória Ferreira: Você fala, em uma entrevista a Graça Ramos[5], que sua geração teve que reidentificar o que era o inimigo, já que na passagem dos anos 1970 para os anos 1980 o inimigo ficou mais fluido.
Marcos Chaves: E continua ainda. Antigamente era mais fácil, todo mundo se reunia contra alguma coisa. O mundo estava polarizado entre capitalismo e comunismo. No nosso caso, a ditadura. E agora o inimigo pode estar dentro da gente mesmo. É a nossa mesquinhez, o nosso egoísmo. O artista como um crítico dele mesmo buscando evolução em diversos aspectos, espiritual, social. A gente pára de pensar no Duchamp e começa a pensar no Beuys, que é uma outra história. Porque o Beuys começa a falar das doenças da sociedade, da maneira que a gente se coloca diante delas e como vamos funcionar. Então, se você começa a assumir isso, você tem que procurar os vírus dentro de si mesmo, na doença social da qual você faz parte.
Glória Ferreira: De certa maneira, podemos dizer que até mesmo a relação com a tradição da arte se transforma.
Marcos Chaves: Começamos a misturar mais arte e vida. A partir de vivências pessoais, procuramos ressonâncias coletivas. A arte procurando reinterpretar o mundo. No meu caso, uso o humor, o desvio, a dobra para apresentar novos olhares para as mesmas coisas. Fluidificar as percepções, tornando-as menos rígidas e dogmáticas. Colocar meu trabalho não foi muito fácil, principalmente por estar trabalhando com estes instrumentos. Ralei para que meu trabalho fosse visto com respeito. Não com seriedade, porque isso não me interessa, mas com respeito. Além disso, não sou um intelectual, se tenho algum conhecimento, alguma esperteza do mundo, não consegui em livro, mas a partir da minha vivência.
Glória Ferreira: A sua referência a Beuys é importante, porque ele desloca a questão da tradição da arte para a finalidade da arte. Aí já não é mais duchampiano mesmo.
Marcos Chaves: Vai para um outro lugar, supera a questão estética. Sem falar da questão xamânica…
Glória Ferreira: No Ideógrafo[6], você diz que os críticos e os artistas foram os seus melhores companheiros. Como é essa relação com a crítica?
Marcos Chaves: Falo de uma situação que considero ideal, que aconteceu comigo, por sorte. Já bati bola com os meus colegas e com alguns críticos, com você, com a Ligia Canongia, com Fernando Cocchiarale e com o Adolfo Montejo. Com você, começou na época na exposição Hélio Oiticica e a Cena Americana, quando trabalhamos juntos. Nesse trabalho, tive contato com as cartas do Hélio Oiticica e do Mário Pedrosa, que me inspiraram muito.
Lula Wanderley: Antigamente, havia um debate na imprensa. Houve, provavelmente, uma reforma nos jornais, que fez com que alguém que escreve sobre política possa, em outro momento, escrever sobre futebol ou sobre arte. Tudo vira uma resenha muito frouxa, sem sentido. E talvez desloque esse debate para os encontros informais. Os artistas e críticos formam uma rede de informações espontâneas, porque há muito tempo não contamos com a imprensa.
Glória Ferreira: De fato, talvez estejamos assistindo a uma mutação profunda da crítica. Quando você diz que a conversa com os artistas e com a crítica tem sido um elemento importante para você, talvez isso reflita a transformação de uma crítica fundada no julgamento, supostamente isenta, para uma crítica mais próxima do pensamento do artista. Creio que Ligia Canongia e Fernando Cocchiarale, por exemplo, tiveram esse importante papel nos anos 1990, aqui no Rio. A atual pluralidade de crítica constitui, a meu ver, um outro tipo de diálogo. Diz-se que a crítica hoje perdeu sua independência para ser um endosso do trabalho, o que não deixa também de acontecer. Mas acho que, do ponto de vista mais genuíno, é um diálogo.
Marcos Chaves: Também acho. Porque você está buscando informações em fontes que eu não tenho muito acesso, ou que não estou procurando. A gente vai só completando algumas idéias. Na ocasião da exposição 7 (Solar Solar Grandjean de Montigny, 1989), o Fernando Cocchiarale, uma das primeiras pessoas com quem tive esse tipo de diálogo, me deu informações sobre o trabalho que eu não tinha. Isso me fez pensar coisas que tornaram o trabalho mais rico. É para melhorar sempre que puder, o trabalho é para todo mundo.
Lula Wanderley: Antes, uma das funções do crítico era situar o trabalho do artista. Recolocá-lo para o público. Hoje, passado o tempo das grandes rupturas, um trabalho como o do Marcos já tem uma escrita, já se coloca, faz uma leitura, a função do crítico passa a ser diferente, passa a ser de diálogo.
Marcos Chaves: Você está falando que dispensa uma interpretação do crítico?
Glória Ferreira: Não tenho muita certeza, tendo a achar que a crítica passa, de certo modo, a ser um elemento constitutivo do trabalho.
Marcos Chaves: Como elucidador?
Glória Ferreira: Talvez uma espécie de interdependência com a própria concepção do trabalho. Os parâmetros se perderam, o que leva a um deslocamento, a uma mutação na relação com a crítica. Por que todo artista quer ter um texto em seu catálogo? É só por conta do mercado ou existem outras relações?
Marcos Chaves: Tem que ficar claro para ele que aquilo é um viés e que existem outros. Tive a oportunidade de ter um trabalho escrito por quatro pessoas diferentes. E cada um viu uma coisa.
Glória Ferreira: No seu trabalho, há uma relação muito forte com o imaginário brasileiro. Como tem sido a sua experiência no circuito internacional, você que, inclusive, começou muito jovem? Que tipo de mudanças você vê na inserção da arte brasileira no contexto internacional? Como você se vê dialogando com as inserções, nesse circuito, de artistas de outros países também periféricos?
Marcos Chaves: Existem poucas referências com potência e visibilidade da nossa produção lá fora. Lygia Clark, Hélio Oiticica, Cildo Meireles, Ernesto Neto, Vik Muniz, Tunga, mas não são suficientes. Não dão conta da nossa diversidade. Ao mesmo tempo, são boas referências de arte. A Lygia e o Hélio foram fundadores de várias coisas, da interatividade, do público dentro do trabalho de arte. É muito importante, porque, quando nós fazemos exposições coletivas com artistas do mundo todo, com chineses, ou europeus, a gente já tem isso incorporado. De certa forma, mostramos vitalidade. No modelo europeu, a periferia ganha mais voz porque há interesse. É mais fácil sairmos para fazer exposições nos Estados Unidos ou na Europa hoje porque eles querem conhecer mais, mas também querem vir fazer exposição aqui também. Existe uma vontade de ampliar o mundo. Não é que eles estão nos dando, mas estão querendo de nós. A gente é guerreiro, com pouca coisa faz muita coisa. E muitos deles com muita coisa fazem pouca coisa. Você vai ver algumas exposições fora do Brasil e há uma frieza. Várias vezes não me interessam, falta sangue.
Lula Wanderley: Você ia à Bienal para ver americano e europeu e, de sobra, tinha aquela turma da periferia. Hoje isso mudou.
Marcos Chaves: Acho que sim, a própria Bienal de São Paulo já mudou este critério. Lá fora, a gente ainda é periferia, e de certa forma somos tratados como periferia. Mas isto anda melhorando muito.
Glória Ferreira: Antonio Dias, em um texto do início dos anos 1980, reeditado agora no livro Crítica de arte no Brasil: Temáticas contemporâneas[7], respondendo à exigência de a arte feita no Brasil trazer estigmas, abacaxis etc., diz: a arte “brasileira” não existe. Isso mudou.
Marcos Chaves: Mudou e já vinha sendo mudado há muito tempo, ele foi um dos responsáveis.
Glória Ferreira: Como você situa o seu trabalho nessa relação, digamos, do local/global? Trabalhos como Não falo duas vezes ou Eu só vendo a vista, por exemplo, são intraduzíveis.
Marcos Chaves: É claro que vou escolher o trabalho que vou apresentar na Alemanha, ou nos Estados Unidos, ou mesmo em Portugal. Eu só vendo a vista não tem nada a ver com dinheiro em Portugal. Eles não entendem essa expressão. O que procuro é certa universalidade, e cabe ao meu bom senso saber entender um pouco cada lugar. O trabalho é o mesmo em qualquer lugar; a maneira como ele é visto é que muda. Um trabalho mostrado em uma Bienal pode ser visto por 600 mil pessoas e é claro que isso é importante. O tempo de contato é outro. Não vou querer que o trabalho da Bienal seja visto como se fosse o meu ateliê, intimista, porque uma orda de gente vai passar por ali. O artista contemporâneo tem que saber se comunicar. Atrair para a questão. A publicidade é muito potente, é uma grande concorrente.
Glória Ferreira: Mudando um pouco de assunto, como se dá a sua relação com a fotografia, tanto no que você chama de anotação, ou quanto trabalho propriamente. E a questão da parceira, como se coloca?
Marcos Chaves: Todas essas três coisas, engraçado, são processos inversos. A fotografia para mim era uma coisa útil, prática, um instrumento de que eu podia dispor rapidamente. Principalmente em relação a certas séries de trabalhos como os Buracos. A fotografia é útil pela capacidade de apropriação imediata. Com o tempo, fui me interessando pela poética da fotografia. Em certo momento, foi importante procurar o olhar e a técnica de um outro fotógrafo profissional para concretizar alguns tipos de trabalho.
Lula Wanderley: Quando eu vinha para cá, falei para uns amigos que ia fazer uma entrevista com Marcos Chaves. Perguntaram-me: o fotógrafo?
Marcos Chaves: Acho que esse livro talvez ajude a esclarecer um pouco essa questão. Porque, dos meus trabalhos, os que mais têm aparecido são aqueles em que uso a fotografia, talvez por ser mais fácil de ser visto. Porque pode ser impresso. Ele circula muito mais que um objeto, um vídeo. Tenho interesse por linguagens, e a fotografia é uma delas. Eu tenho grande interesse pelo espaço também.
Os trabalhos que fiz esse ano não foram de fotografia, foram trabalhos relacionados com questões espaciais. O Fontana, no Arquivo Geral, e o Benvindo, na exposição Pylar. De certa forma, apresento novas alternativas de leitura. Pode ser uma foto ou uma fita abstrata. São coisas muito comuns, que eu procuro deslocar de seu contexto.
Glória Ferreira: Você foi aluno da Lygia Pape. A relação com a cidade e com o universo popular, que a Lygia trazia de maneira muito forte, foi marcante para você? Ela introduziu, no nosso meio, um ensino de arte não-acadêmico.
Marcos Chaves: Sim, além disso, sempre me interessou a sua liberdade. Tanto na utilização desses objetos populares quanto na construção de sua poética.
Lula Wanderley: A Lygia Pape tinha alguma coisa solar, que também vejo na sua obra. Na sua, até certa exuberância luminosa.
Marcos Chaves: Isso era o que me interessava nela. Tinha liberdade e vitalidade. Os trabalhos dela são atemporais, não são muito datados. Tanto os últimos como os do meio da sua carreira. E a liberdade de trabalhar com tecnologia ou não sempre foi experimental. A Lygia é um ótimo exemplo para um artista jovem. Ela foi responsável pela formação de muitos artistas.
Glória Ferreira: E como professor, como é a sua experiência?
Marcos Chaves: Procuro estimular os alunos a experimentar, assim como a Lygia fazia. Ela é uma referência para mim como professor. De não vir com uma informação carregada, pesada, erudita em cima do aluno. Deixá-lo trabalhar livremente com suas referências, deixá-lo fluir e depois abrir para o papo, com ele somente ou em grupo.
Glória Ferreira: Outro dia escutei você dizendo que havia feito uma capa para uma publicação e que, como designer, você precisaria mandar para aprovar e, como artista, não. Em que medida a experiência com o design está presente em seu trabalho?
Marcos Chaves: O designer é um técnico, está ajudando a dar uma cara para o trabalho. Como artista, quem vai decidir a cara é o dono da cara. Mas minha experiência como designer me ajudou a equalizar uma questão subjetiva com a questão da comunicação. Quando trabalho com a faixa amarela e preta, talvez seja uma influência de eu ter trabalhado como designer. Trabalhei no Banco Nacional como programador visual cuidando da parte de comunicação, de sinalização. Foi lá que foi implantada pela primeira vez a faixa adesiva no chão para organizar as filas.
Glória Ferreira: E a música?
Marcos Chaves: Sou superligado à música. A música me inspira, me localiza no mundo, no meu tempo. O que se está fazendo em música agora, de alguma forma, tem a ver com o que eu estou fazendo no trabalho. Uma coisa reverbera na outra. Tenho muitos amigos artistas assim também nessa vibração.
Glória Ferreira: Poderia ser o título da entrevista: “Nessa vibração”.
Notas
[1] The laughing container apresentado na mostra On Leaving and Arriving, realizada pelo Contemporary Temporary Artspace, em Cardiff, Inglaterra.
[2] Entrevista com Graça Ramos: “Temos que respeitar mais a alegria”. Arte Futura e Companhia, Brasília, 2002.
[3] “O pedestre e o passante”.
[4] Errática, revista eletrônica, disponível em: <http://www.erratica.com.br>.
[5] Entrevista com Graça Ramos: “Temos que respeitar mais a alegria”. Arte Futura e Companhia, Brasília, 2002.
[6] Piloto de programa para televisão gravado em 2005, 25 min., NTSC sistema de cores. Direção Giovanna Giovanini e Eduardo Calvet.
[7] FERREIRA, Glória (Org.). Crítica de arte no Brasil: Temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006.