Do avesso de um buraco, ou outra fronteira (Adolfo Montejo)
Há obras que criam as suas fronteiras, ou melhor, as fazem convergir, não as eliminam, até as re-dimensionam, sem nenhum espírito alfandegário, é óbvio. Sobretudo num contexto no qual o discurso fronteiriço, culturalmente correto de nossa época, saúda isso nas suas aparências comerciais. A mitificação a qualquer preço do termo, desta condição, como um item a mais da globalização acostuma vir junto à palavra híbrido. No caso da série dos Buracos de Marcos Chaves acontece este paradoxo, mas de forma crítica, atenta, lúcida, pois no lugar de saber que estamos frente a uma coisa definida, codificada, estamos sempre em trânsito, numa reflexão que não se fixa num lugar, onde o chão das fronteiras se move, em vários de seus sentidos. Talvez porque a série, já desde o seu ponto de partida convide a isso, a compartilhar diferentes pontos de vista, deslocamentos que mudam de estratégia, operações conceituais que já estão embutidas na matéria visual escolhida, trabalhada e trasladada.
Esta mesma condição fronteiriça se explica também pelos vários limites em convergência, pelo fato de que a série Buracos seja ao mesmo tempo várias coisas indistintamente: é escultura coletiva, instalação pública, intervenção popular, também apropriação conceitual, ready-made urbano, fotografia, e para finalizar, obra política, e não necessariamente nesta ordem, porque aqui não importa tanto a soma como a sua multiplicação. Contudo, cada buraco de rua carioca levanta não só uma peça tridimensional de aviso para os transeuntes, e sobretudo para a circulação viária, como registra uma incontestável improvisação que está além e aquém do horizonte povera ou do discurso dadaísta, talvez em seu meio fio mais agreste.
Como verdadeiras fantasmagorias urbanas então, Marcos Chaves tem resgatado as intervenções locais de rua como aparições kurtshwitersanas. Pois cada buraco é uma falha na calçada do poder político da cidade, uma fresta simbólica que se abre, homenagem popular ao perigo da política que falha e que é fissura no imaginário social. Cada buraco é uma intervenção que joga com as presenças e as ausências (de chão, de vazio, de estrutura, de sinais), que é lida com uma ironia cúmplice e mordaz. Assim como não é a primeira vez que o artista se aproxima com olhar transversal e humorístico para o imaginário urbano de sua cidade, desta vez o itinerário estético é outro. Como se pode intuir, nesta cartografia carioca não se tem uma unidade de território, pois ela é aleatória, mundana, nômade. À elevada soma de circunstâncias se une a superposição de elementos que concorrem para umas obras que deveriam entrar também no simbólico Museu do Acidente de Paul Virilio: acidente, acaso, trânsito, colagem, improvisação…
A outra dimensão que o artista explora se encontra no jogo da linguagem – de ecos magrittianos – estabelecido no simples título, onde o buraco é uma representação virada do avesso, e um iceberg da representação, cujos sentidos abrangem outro espaço que o visível. Aqui, dito no estilo da língua coloquial, o buraco é mais embaixo. De novo, a linguagem verbal e imagética se cruzam, contornam seu abismo. Como diz uma ocasião Mel Bochner: “Há um imenso abismo entre o espaço dos enunciados e o espaço dos objetos.” E ainda mais, quando o objeto visa ter outros objetivos, saltar seus logos, e o enunciado atinge outro espaço discursivo, quando eles não se encaixam nem cômoda nem categorialmente. Por exemplo, a mesma fotografia, utilizada cada vez mais por Marcos Chaves como suporte, tem em si essa divisória, esse olhar em fresta que permite levantar suspeitas sobre o real e a sua ficção, sobre a natureza da imagem e a sua ironia, sobre seus códigos. Sendo assim, a poética deste trabalho nasce de uma ruptura que é tematizada entre o mundo real, a escultura que o modifica, e o registro em imagem fotográfica. As fotografias dos buracos são auto-representações, onde objeto e idéia se acasalam em sua matéria-prima (a peça levantada na rua) e a sua categoria de pensamento (o registro conceitual e fotográfico), mas para dar em tautologias perversas, que não param de incidir em vários campos de entendimento. São outros sinais na pista. Daí que nesta coleção de buracos se pode ver muito mais do que se pensa.
Adolfo Montejo Navas
Abril, 2006