Arte como Máscara (Ligia Canongia)

 

Marcos Chaves é um artista cuja obra porta sempre um sentido crítico latente, embora destilado pelo mundo da poesia. Sua poética crítica toca simultaneamente em três esferas: o eu lírico do artista, o mundo como instância política, e a arte como expressão desse ‘eu’ e desse ‘mundo’, isto é, como expressão moral. Entretanto, a complexidade dessas relações parece estar sempre à sombra de amplas doses de humor, instrumento com o qual o artista burla o senso trágico do mundo, conferindo-lhe uma aparência jocosa. É preciso que o espectador se detenha para além dessa simulação inicial, além do riso, para encontrar o aspecto lúgubre do trabalho, por detrás do logro com o qual se defronta.

Na exposição atual, Chaves assume a figura da máscara como signo-síntese, presente nas fotografias e nos vídeos, figura que condensa de maneira magistral o próprio jogo semântico da obra, pois a máscara carrega, na origem de sua representação, a função moral, a função política e a função poética. A máscara tem ainda o potencial de absorver muitas das questões que interessam ao território da arte em sua acepção moderna: as questões da ilusão, do mito, da alegoria e do simulacro. Numa esfera ainda mais ampla, a máscara toca na dicotomia entre o falso e o verdadeiro, dilema que, desde Platão, fundamenta o universo estético.

A figura da máscara não é estranha ao trabalho de Marcos Chaves, e já pôde ser observada nas intervenções que realizou no Castelinho do Flamengo, em 2000, quando, através de maquiagens, cílios postiços e outros adornos, transformou as esculturas ecléticas da fachada e do interior do prédio em imagens vivas e divertidas, como drags, sátiros, ninfas e anjos. Efetuava ali um desvio na natureza estática das estátuas, trazia atualidade e ironia ao caráter obsoleto da produção acadêmica, e ainda ressaltava o quanto do ecletismo – gênero que transita entre vários estilos – foi apropriado pelo mundo pós-moderno.

Outro trabalho recente, Morrendo de rir, que exibiu na Bienal de São Paulo de 2002, também trazia a máscara como elemento subjacente, embora disfarçado no próprio rosto do artista. Inúmeras imagens monumentais de Marcos Chaves, às gargalhadas, justapunham-se no espaço, dando ao riso e à figura um caráter fantasmático e desconcertante. A monumentalidade das fotografias descontruía inteiramente a idéia do auto-retrato, fazendo as imagens adquirirem estatuto de máscaras. A ambigüidade do título, seu sentido tragicômico, encontrava no signo da máscara seu correspondente mais perfeito: ali estava não só o travestimento do ‘eu’ em ser ficcional, como o mascaramento do riso em morte, ou da morte em riso.

As obras atuais guardam parentesco com esses trabalhos, na medida em que brincam com a morbidez, ou equiparam o universo da paixão às pulsões de morte. Formalmente, no entanto, assumem a presença declarada da máscara, como intermediário expressivo e necessário aos efeitos da ambivalência.

Nessa mostra, um dos vídeos parte de uma foto de Robert Mapplethorpe, de 1988, um ano antes de o artista falecer, em que ele aparece sobre um fundo negro infinito ao lado de uma bengala cujo topo é uma caveira. A partir dessa imagem, e em homenagem ao fotógrafo norte-americano, Marcos Chaves desenvolveu o primeiro dos dois vídeos apresentados. Neles, Chaves se auto-retrata – metade artista/personagem, metade máscara de carnaval – ilustrando, em cada um respectivamente, a morte e a paixão. No primeiro, a remissão à fotografia de Mapplethorpe é imediata, mas Chaves quebra a seriedade fúnebre da referência, por meio de uma bengala que também é brinquedo, e é uma buzina. Passados os primeiros momentos de absoluta concentração mórbida, o soar da buzina escancara o riso e seu poder de escárnio. No segundo, o movimento é oposto. Passamos de nossa gargalhada inicial, frente à imagem do artista portando uma máscara popular, com uma boca feminina polpuda e hilária, à observação silenciosa. O riso se cala, pois a duração prolongada demais da mesma imagem acaba por lhe render um senso absurdo e esmagador.

A observação de que apenas a metade inferior do rosto do artista é mascarada, e que seus olhos permanecem ‘reais’, é relevante. Primeiro, porque ratifica a função original da máscara de dividir dois universos antagônicos: o da persona e o da personagem. Segundo, porque mantém como ‘realidade’ apenas o olhar, função orgânica essencial para o fenômeno estético, e canal por onde, artista e público, filtram o visível. Por último, a idéia da ‘cara-metade’, isto é, de alguém que equivale a outro, ou é seu absoluto semelhante, é significativa, porque faz as duas metades (persona e personagem) se corresponderem, desfazendo o conceito de máscara no mesmo ato em que dela se apropria. A ‘cara-metade’ é, assim, uma sorte de trocadilho visual, que nos remete ao conjunto da obra de Chaves, estruturada ela mesma por jogos visuais e textuais que se ancoram no trocadilho, ao sabor dos calembours duchampianos.

Os trabalhos fotográficos, por sua vez, estendem a temática da morte e da paixão em um suporte que se relaciona tautologicamente, e em sua origem técnica, com essas idéias. Sem possibilidade de se desenrolar no tempo como os vídeos, as fotografias petrificam a imagem, são mais sintéticas e emblemáticas, e congelam o teatro das máscaras na própria ‘morte’ oriunda do cut fotográfico, que tudo estabiliza. Afinal, como diz Philippe Dubois, o jogo essencial da fotografia é a brincadeira de estátua.

Nas fotografias, assim como nos desenhos, Marcos Chaves torna a desenvolver as figuras da máscara, da boca e da caveira, fazendo algumas anamorfoses, como a que transforma a boca em outros signos banais do mundo da paixão: o coração e a maçã. E é importante observar que a palavra apple já está contida no próprio nome de Mapplethorpe, voltando a nos remeter aos jogos de palavras e aos trocadilhos que tanto interessam a Chaves, assim como nos fazendo perceber a circularidade que há em todo o conjunto desses trabalhos.

Duas fotos de grande formato chamam a atenção, porque trazem de volta a presença de objetos, com os quais Chaves iniciou sua carreira, e que estavam ausentes há algum tempo. Curiosamente, no entanto, esses objetos apresentam-se sob forma de fotografias, e mais uma vez deformados pela mesma monumentalidade que cercou as imagens da Bienal. O uso da foto sustenta-se sobre dois argumentos essenciais. Primeiro porque, ao achatar o objeto na fotografia, e eternizar no tempo apenas sua imagem frontal, o artista anula o aspecto tridimensional daquele objeto-escultura, assim como nossa possibilidade de circular a seu redor. Produz, com isso, um contra-senso no próprio conceito de objeto, reduzindo-o a uma sobrevivência planar. Segundo porque, apenas sua reprodução fotográfica e ampliada poderia dar a esse ‘objeto’ o atributo monumental que o torna inverossímil, além da articulação, já inverossímil, de seu assemblage. Chaves, assim, duplica o caráter imponderável desses objetos, congelando sua existência no tempo, e amplificando sua presença no espaço.

Esses trabalhos, além de ilustrar a forma inteligente com que Marcos Chaves vem se servindo do suporte fotográfico, remontam à temática geral da mostra, reincidindo sobre a ‘comédia’ da máscara. A circularidade que perpassa o universo da exposição, ademais, envolve a obra de Chaves por inteiro, e explica a atração que o artista possui pelo fenômeno da tautologia. Uma tautologia que, no entanto, nunca se realiza e permanece sugerida, uma vez que Marcos Chaves sempre quebra a sua completude auto-remissiva, desviando-a pelo trocadilho, interrompendo sua previsibilidade. A máscara e o trocadilho, afinal, podem ter seus pontos de encontro: ambos são desvios da ‘verdade’, alteram a linha reta do mundo em bifurcações surpreendentes, e podem transformar carruagem em abóbora e morte em gargalhada.

Fevereiro de 2005.