Negra IRONIA amarela (Adolfo Montejo)
A falta de piedade da ironia determina que só seja salvo o que merece ser salvo, segundo uma velha anotação de Cioran. Pode-se dizer que para grande parte da arte contemporânea ela é um estimado recurso expressivo, em sintonia talvez com os tempos de hoje, mais pesados do que parecem. No vocabulário de Marcos Chaves ela não é só presença constante, mas também estrutural, na medida em que permite apresentar um véu sobre o que verdadeiramente despe. O resultado é sempre algo com um disfarce transparente, em que quase tudo está à vista, mas só vendo.
A ironia visual continua, agora na Galeria de Laura Marsiaj, na mesma semântica do amarelo, uma cor já considerada a cor da loucura, a cor corporal por Kandinsky, mas também a escolhida pelos códigos urbanos de trânsito, como signo de atenção e isolamento. Uma fita negro-amarela de plástico que, como se pode ver, é o ponto de partida desta ousada exposição, que começa sendo visual e acaba sendo extraordinariamente física. De fato, a instalação contém uma dúvida que ocupa a Galeria toda: uma dúvida sobre a cor como sensação, como informação: “a cor não está nas coisas, mas na relação entre as coisas e nós” (Félix de Azúa). A aposta da Galeria é clara: a obra é o lugar. Marcos Chaves sabe disto quando desloca significados do processo de comunicação nesta obra, que é um “jogo de linguagem” negro-amarelo.
Assim como uma leve memória do amarelo no artista remete a anteriores trabalhos de outra índole (série de objetos de Hommages aux Mariages, postes de fila única de S/ Título) cujo dominante tonal é reconhecível, a escolha da própria fita como material de trabalho lembra uma irmandade de apropriação com aqueles baldes oiticianos com luz vermelha, das ruas cariocas. Mas é sobretudo o diálogo interno com Raymundo Collares o que mais aparece nesta obra chamada Logradouro, pela vertente pop/construtiva que a composição desta instalação respira. Na verdade, podem-se escutar coisas comuns: certa melodia da cidade grande e signos de uma voragem urbana, embora a natureza das obras seja de seqüências diversas: naquele mais temporal e em Marcos Chaves mais espacial. A instalação não deixa de ser um caleidoscópio onde elementos pop/op/cinético/neoconcretos se articulam no olho sempre neo-dada do artista.
É sobre a comunicação social deste elemento viário, sobre os códigos visuais e sua leitura que se assenta esta obra site specific, aliás, mais specific que site, pois suas fronteiras genéricas situam-se mais ambiguamente: trata-se de uma instalação cujo conteúdo é a forma, e cuja substância é tão interior quanto exterior. É obra de Galeria e obra pública ao mesmo tempo, sem saber nunca se o fluido dela está entrando ou saindo – o mesmo ponto energético que toda imagem tem, neste caso, situa-se numa parede como feixe ou sumidouro.
Embora a matéria-prima escolhida nesta obra não saia do plano, trata-se de uma obra de pura superfície que é toda volume, fazendo da galeria uma caixa, um continente de ressonâncias conceituais. Se é famosa no artista carioca a apropriação de objetos e fotografias, quando não de palavras, neste caso a apropriação é de um espaço da arte. O espaço expositivo é a obra. Se já numa ocasião anterior, neste mesmo espaço, o próprio Marcos Chaves trouxe para uma nova dimensão uma instalação feita num Castelinho, agora numa outra reviravolta, traz à tona uma diferente condição para a Galeria. Ela é magnetizada pela nossa presença, fazendo-nos parte da obra.
Uma obra que resgata uma vertente instalativa anterior, sempre preocupada com a desnaturalização representacional. De alguma forma, Logradouro é um trabalho pictórico sem pintura. A composição da instalação guarda também uma descontinuidade visual, ou melhor, respeita as geometrias do acaso, essa outra pedra filosofal do mestre francês do dadaísmo. A seqüência deste acaso geométrico guarda sua poção própria de humor, um elemento indispensável no artista, tanto como linguagem quanto como substância (veja-se o sonoro trabalho apresentado na atual Bienal de São Paulo).
Em Logradouro, as linhas de orientação de rua conduzem à Galeria para descobrir que a obra é precisamente os próprios sinais. Tanto o material como o suporte e a mesma Galeria entram aqui numa certa roda desconstrutiva: a fita sofre uma intervenção e ela mesma intervém, é dona da seqüência e do espaço: o espaço da Galeria torna-se seqüencial.
A operação do artista segue sendo combinatória: é a convergência da intervenção e da apropriação ao mesmo tempo: através dos signos mexe em nossos referenciais. O exercício inerente desmonta um sistema de representação viário com outro uso de linguagem da mesma imagem: a ‘desconvenção’ de uma fita urbana. A estratégia ‘desublimadora’ de Marcos Chaves ganha um paradoxo a mais, sobretudo quando o próprio artista não teme reconhecer que “o sublime pode chegar através do humor”. O que acontece com Logradouro. Não esqueçamos que a ironia adora adivinhar qualquer crise de representação, e até as nossas convenções visuais e ideológicas mais veteranas.
O olhar que persegue este trabalho é dilatado. É um olhar de visita, ou melhor, a visita do olhar. As chaves artísticas de Marcos são essas (já estão no nome, como descobriu a tempo L. Canongia). Encontrar caminhos onde há buracos, encontrar buracos onde há objetos, pedaços, fragmentos, figuras onde há cores. Ou como pede um aforismo de Licthenberg: “Novos olhares para velhos buracos.”
Adolfo Montejo Navas
janeiro de 2002
Poeta, crítico de arte e literatura, tradutor e artista plástico.