Morrendo de rir

XXV Bienal de São Paulo (2002)
   

Quando o olho ri, ou vice-versa

“Tristesa demasiada ri. Riso demasiado chora”. William Blake

Para quem não conhece, mas também para quem conhece bem a obra anterior de Marcos Chaves, construída sempre sobre os parâmetros da apropriação e da intervenção, a chegada desta obra à Bienal não deve deixar de surpreender, pois a reconhecida chave do humor de seu trabalho, como sinônimo de linguagem, aqui não se apresenta só como elemento, mas como fundamento, como uma declaração estética. O que à vista da seriedade de grande parte da última arte – às vezes de uma sagramentação conceitual que dificulta até a passagem do ar – é algo mais que oportuno, faz que seja um trabalho mais procedente do que nunca.

Como não podia deixar de ser, Morrendo de rir é um trabalho fronteiriço não só pela sua natureza mista e pela criação de um espaço híbrido, como também pela semântica não delimitada das imagens: de dor, de grito, de gozo? Marcos Chaves tem escutado este paradoxo intrínseco do riso – cujo extremo é a gargalhada – tão “essencialmente humano” e “essencialmente contraditório”, segundo confessava Baudelaire, para fazer uma verdadeira instalação-colagem, na qual as partes da obra são superpostas, ligadas como se fossem camadas, também levadas a seu extremo: silêncio, imagem, espaço e riso.

Se um dos sonhos reconhecíveis das instalações é sua aproximação à vida, a questões da condição humana, aqui as duas partes desta obra se fundem numa terceira que é o público, como se fosse um “fio terra”. De fato, o equilíbrio/diapasão desta instalação visual-sonora ou, dependendo da ordem acionada pelo visitante, sonora-visual, repousa nesse triângulo: as imagens do artista – as gargalhadas – os visitantes. Devido a esta estrutura da obra, os visitantes convertem-se em médiuns, pois são eles quem sintonizam a gargalhada visual e a sonora, com o acréscimo da sua, muito possivelmente. Os espectadores são os que ativam a obra, sua seqüência. Uma seqüência, aliás, que nunca está parada, tanto pelo movimento da imagem da boca-gargalhada, como pelo som que colabora como movimento: a imagem remete para uma trilha e o som se faz imagem.

O silêncio oficial da arte pode ser quebrado pela obra no momento em que pessoas rindo transgridam seu espaço sonoro, e até a própria narração, pois a obra não é estática (como podem suscitar as fotografias aqui objetualizadas); é continua: refaz-se em cada visitante que chega, em cada riso ou gargalhada nova, como um moto-contínuo da obra, onde se pode descobrir um heterodoxo e vivo componente, pois ainda que o motivo se repita – a forma dificilmente o fará –, às vezes o efeito e a causa podem alterar-se nela. Assim, se a metade da obra é do domínio do público, é porque é ele quem dá a última palavra, ou melhor dizendo, dá a última gargalhada, já que a obra tem essa vontade de ensaio aberto, essa ousadia.

Morrendo de rir faz parte de um vocabulário artístico de Marcos Chaves, cuja maior figura continua sendo a ironia: da arte, do espaço da arte e do próprio artista; e aí estão os jogos de formas que se podem intuir do riso e sua gargalhada, como precisamente o contrário do quadrado da sala e dos próprios puffs, ou as amontoadas imagens do rosto do artista, como o maior exemplo para equacionar o campo de tensão de um trabalho que se aproxima dessa vertente da arte acústica, mas que sobretudo põe em pane alguns de nossos créditos estéticos, pela junção irônica do olho e o ouvido sobre um título que cumpre o que promete.

XXV Bienal Internacional de São Paulo
Adolfo Montejo Navas
Rio de Janeiro, março de 2002