Logradouro

2002
     

Em Logradouro estamos diante de um trabalho de Marcos Chaves que nos revela o procedimento central da construção de sua obra: o deslocamento de objetos e imagens do cotidiano para o campo da arte. Através destes deslocamentos, Chaves realiza um desvio em significados correntes, banais, gerando a aparição de novos sentidos. Nesta instalação, de forte impacto sensorial, nos deparamos com a apropriação de fitas negro-amarelas, encontradas nas ruas como código viário utilizado para delimitar espaços e orientar pedestres e motoristas.

Pelas mãos do artista, esta matéria trivial e planar é multiplicada, revestindo todo o ambiente da galeria, ganhando assim um volume que antes inexistia. As inversões de Chaves prosseguem: o que tinha como destino original sinalizar, surge aqui como pura vertigem, que antes nos desnorteia do que orienta. Sua forma geométrica, que nos remete ao construtivismo, também ganha um desvio, no lugar da ordem e da calma que as obras do nosso principal legado moderno nos evoca, Chaves nos oferece um ambiente perturbador. Em Logradouro espaço expositivo e obra se misturam. O espaço é a obra. Mas ao mesmo tempo Logradouro é também obra pública, dialoga com o que está lá fora, não só por ser toda ela feita de uma matéria utilizada no espaço urbano, mas também pela sensação de vertigem e velocidade que nos proporciona. Nos colocando assim diante de uma experiência perceptiva e temporal com a qual nos deparamos diariamente quando saímos às ruas das grandes cidades pós-modernas, como por exemplo São Paulo, que hoje abriga Logradouro.

Luisa Duarte

Museu Vale do Rio Doce, Espírito Santo, Brasil (2002)
Galeria Laura Marsiaj, Rio de Janeiro (2002)
Centro Maria Antônia (USP), São Paulo (2004)
Itaú Cultural, São Paulo (2005)
Inclusive, Galeria A Gentil Carioca, Rio de Janeiro (2017)

Negra IRONIA Amarela

Adolfo Montejo Navas
Poeta, crítico de arte e literatura, tradutor e artista plástico.
janeiro de 2002

A falta de piedade da ironia determina que só seja salvo o que merece ser salvo, segundo uma velha anotação de Cioran. Pode-se dizer que para grande parte da arte contemporânea ela é um estimado recurso expressivo, em sintonia talvez com os tempos de hoje, mais pesados do que parecem. No vocabulário de Marcos Chaves ela não é só presença constante, mas também estrutural, na medida em que permite apresentar um véu sobre o que verdadeiramente despe. O resultado é sempre algo com um disfarce transparente, em que quase tudo está à vista, mas só vendo.

A ironia visual continua, agora na Galeria de Laura Marsiaj, na mesma semântica do amarelo, uma cor já considerada a cor da loucura, a cor corporal por Kandinsky, mas também a escolhida pelos códigos urbanos de trânsito, como signo de atenção e isolamento. Uma fita negro-amarela de plástico que, como se pode ver, é o ponto de partida desta ousada exposição, que começa sendo visual e acaba sendo extraordinariamente física. De fato, a instalação contém uma dúvida que ocupa a Galeria toda: uma dúvida sobre a cor como sensação, como informação: “a cor não está nas coisas, mas na relação entre as coisas e nós” (Félix de Azúa). A aposta da Galeria é clara: a obra é o lugar. Marcos Chaves sabe disto quando desloca significados do processo de comunicação nesta obra, que é um “jogo de linguagem” negro-amarelo.

Assim como uma leve memória do amarelo no artista remete a anteriores trabalhos de outra índole (série de objetos de Hommages aux Mariages, postes de fila única de S/ Título) cujo dominante tonal é reconhecível, a escolha da própria fita como material de trabalho lembra uma irmandade de apropriação com aqueles baldes oiticianos com luz vermelha, das ruas cariocas. Mas é sobretudo o diálogo interno com Raymundo Collares o que mais aparece nesta obra chamada Logradouro, pela vertente pop/construtiva que a composição desta instalação respira. Na verdade, podem-se escutar coisas comuns: certa melodia da cidade grande e signos de uma voragem urbana, embora a natureza das obras seja de seqüências diversas: naquele mais temporal e em Marcos Chaves mais espacial. A instalação não deixa de ser um caleidoscópio onde elementos pop/op/cinético/neoconcretos se articulam no olho sempre neo-dada do artista.

É sobre a comunicação social deste elemento viário, sobre os códigos visuais e sua leitura que se assenta esta obra site specific, aliás, mais specific que site, pois suas fronteiras genéricas situam-se mais ambiguamente: trata-se de uma instalação cujo conteúdo é a forma, e cuja substância é tão interior quanto exterior. É obra de Galeria e obra pública ao mesmo tempo, sem saber nunca se o fluido dela está entrando ou saindo – o mesmo ponto energético que toda imagem tem, neste caso, situa-se numa parede como feixe ou sumidouro.

Embora a matéria-prima escolhida nesta obra não saia do plano, trata-se de uma obra de pura superfície que é toda volume, fazendo da galeria uma caixa, um continente de ressonâncias conceituais. Se é famosa no artista carioca a apropriação de objetos e fotografias, quando não de palavras, neste caso a apropriação é de um espaço da arte. O espaço expositivo é a obra. Se já numa ocasião anterior, neste mesmo espaço, o próprio Marcos Chaves trouxe para uma nova dimensão uma instalação feita num Castelinho, agora numa outra reviravolta, traz à tona uma diferente condição para a Galeria. Ela é magnetizada pela nossa presença, fazendo-nos parte da obra.

Uma obra que resgata uma vertente instalativa anterior, sempre preocupada com a desnaturalização representacional. De alguma forma, Logradouro é um trabalho pictórico sem pintura. A composição da instalação guarda também uma descontinuidade visual, ou melhor, respeita as geometrias do acaso, essa outra pedra filosofal do mestre francês do dadaísmo. A seqüência deste acaso geométrico guarda sua poção própria de humor, um elemento indispensável no artista, tanto como linguagem quanto como substância (veja-se o sonoro trabalho apresentado na atual Bienal de São Paulo).

Em Logradouro, as linhas de orientação de rua conduzem à Galeria para descobrir que a obra é precisamente os próprios sinais. Tanto o material como o suporte e a mesma Galeria entram aqui numa certa roda desconstrutiva: a fita sofre uma intervenção e ela mesma intervém, é dona da seqüência e do espaço: o espaço da Galeria torna-se seqüencial.

A operação do artista segue sendo combinatória: é a convergência da intervenção e da apropriação ao mesmo tempo: através dos signos mexe em nossos referenciais. O exercício inerente desmonta um sistema de representação viário com outro uso de linguagem da mesma imagem: a ‘desconvenção’ de uma fita urbana. A estratégia ‘desublimadora’ de Marcos Chaves ganha um paradoxo a mais, sobretudo quando o próprio artista não teme reconhecer que “o sublime pode chegar através do humor”. O que acontece com Logradouro. Não esqueçamos que a ironia adora adivinhar qualquer crise de representação, e até as nossas convenções visuais e ideológicas mais veteranas.

O olhar que persegue este trabalho é dilatado. É um olhar de visita, ou melhor, a visita do olhar. As chaves artísticas de Marcos são essas (já estão no nome, como descobriu a tempo L. Canongia). Encontrar caminhos onde há buracos, encontrar buracos onde há objetos, pedaços, fragmentos, figuras onde há cores. Ou como pede um aforismo de Licthenberg: “Novos olhares para velhos buracos.”


Logradouro
Ligia Canongia

O trabalho de Marcos Chaves tem se desenvolvido no sentido de construir uma nova ética para o mundo das formas. Fazer com que o universo da arte não se restrinja mais à pura sensibilidade, nem se esgote em procedimentos estritamente estéticos, mas acrescente às assim chamadas “formas plásticas” um pensamento capaz de especular sobre o sentido do mundo, sua lógica, suas convenções e seus absurdos.

Apropriando-se de objetos banais, dos códigos e do consumo das grandes massas, e ainda da arquitetura e da cena urbana, o artista parte do déjà-vu, das coisas e dos sinais já assimilados pela convenção e pelo hábito, para neles injetar significações outras, surpreendentes e inesperadas. Afinal, a arte sempre foi o lugar da criação do novo, mas a novidade pode estar no simples deslocamento do lugar ou do sentido original das coisas, operação que os dadaístas inauguraram e Duchamp radicalizou. Marcos Chaves persegue portanto o filão desses desvios, como formas de intervir na ordem funcional ou convencional dos objetos e dos comportamentos. Com interferências irônicas e plenas de humor, o artista desestabiliza o espectador, retirando-lhe o chão daquilo que acreditava conhecer e dominar, expondo-lhe um outro lado, talvez o avesso, dos objetos, das formas e das matérias que pareciam vulgares.

Essa é a operação da obra Logradouro. Chaves empresta função “artística” e dá volumetria e monumentalidade a uma matéria ordinária e planar, como as faixas pretas e amarelas usadas na sinalização urbana. E ainda, ao senso de orientação e ordenamento que essas faixas possuem no complexo viário, o artista contrapõe o sentido da desorientação e da turbulência visual, indeterminando os limites originais do espaço e retirando do espectador qualquer ponto de horizonte e equilíbrio. Sem referência espacial, lançado ao centro de uma rede de linhas que se emaranham e avançam até o ápice de redemoinhos que constituem sua terra e seu céu, o espectador encontra no desequilíbrio e na vertigem o estranhamento de seu próprio “lugar” no mundo, agora despido das regras e dos sinais que convencionam o nosso mover. Mas, o espantoso é que, apesar desse sentido desestabilizador, a obra tem como princípio o traçar construtivo das linhas e das cores, seguindo evoluções que, ao menos a priori, partiam de coordenadas precisas e geométricas, o que, na verdade, constitui o seu paradoxo. Logradouro é uma torção em nossa sensação de segurança e estabilidade; é uma torção na idéia de um lugar/ abrigo interior, protegido do mundo lá fora, pois que a galeria se torna, ela mesma, uma continuidade desse mundo, o exterior; Logradouro é também um desvio das normas de funcionamento coletivo, orientado por convenções que pretendem regular nossos movimentos e, por último, a obra é ainda uma torção na precisão e na ordem da arte construtiva, pilar da nossa tradição moderna.

Logradouro é velocidade pura, é espaço quase tempo: espaço insubordinado que não chega a constituir lugar, tempo ensandecido que corre sem esperar que tomemos consciência de onde estamos.