Apropriação e memória (Fernando Cocchiarale)

 

Nascido da apropriação de imagens e de objetos cotidianos, o trabalho de Marcos Chaves inscreve-se num projeto estético alternativo à produção de formas e ao fazer manual, característicos das linguagens convencionais da arte (pintura, escultura, desenho e gravura).

A potência estética da apropriação e da combinação de utensílios da vida diária foi legitimada pelas práticas renovadoras de alguns artistas, ainda nas primeiras décadas do século XX.  Colagens e assemblages cubistas, o surrealismo, o dadaísmo e, particularmente, as propostas de Marcel Duchamp (readymade) e de André Breton (objet trouvé) incorporaram a apropriação de objetos ao repertório da criação artística.  Tal procedimento, até então inaceitável, passou a ser tolerado por setores da crítica e do mundo das artes, embora seguisse incompreensível para a maioria.

Talvez por conta dessa incomunicabilidade tenham sido necessários cerca de cinqüenta anos até que a apropriação de objetos e de materiais não artísticos se tornasse, a partir da pop art, do minimalismo, da arte povera e da arte conceitual, um método freqüente da produção contemporânea.  Para muitos artistas, o sentido da criação migrou da produção artesanal das obras para as suas idéias e atitudes.

No caso de Marcos Chaves, a coleta e a combinação dos objetos é fundamental.  Feita em função de idéias prévias, na rua ou em brechós, essa coleta, quase sempre de refugos do consumo urbano (seja pelo desgaste provocado pelo uso, seja pela configuração precária da reciclagem típica das camadas sociais mais pobres) determina a poética de Chaves.

O artista, porém, não se restringe à apropriação de utensílios e de imagens preexistentes aos trabalhos.  A combinação dos objetos entre si e com imagens fotográficas jamais pretendeu resultar numa composição formal e perene como a da escultura, que tem uma estrutura fixa.  Antes concebida (mentalmente) do que produzida (materialmente), ainda que em certos casos possa ter sido deflagrada por alguns dos objetos coletados, a conexão dos componentes das obras de Marcos é feita pela disposição dos objetos no espaço expositivo.  Mas também, e talvez sobretudo, por meio dos irônicos nexos estabelecidos pelas palavras grafadas nas próprias obras ou registradas nos títulos dos trabalhos.  Chaves cria uma sintaxe sem regras prévias que empresta sentido estético ao conjunto de sua produção.

As imagens fotográficas agora expostas foram feitas a partir do trabalho de Marcos Chaves na mostra Eclético, quando ele e Ana Vitória Mussi, separadamente, criaram seus site specifics, no Castelinho do Flamengo.

Todos os elementos essenciais de sua poética, exceção feita à palavra (que aqui, curiosamente, desempenha um papel secundário), aí estão:  o ecletismo da arquitetura, as esculturas estucadas nas paredes, as maquiagens e demais enfeites usados sobre as estátuas do lugar são similares, no caráter e no método (jamais na configuração) a todos os outros por ele trabalhados.

Petrificadas na frágil materialidade do papel fotográfico, estas imagens registram a efêmera intervenção do artista.  A imóvel eternidade das estátuas do Castelinho do Flamengo, perturbada pela guerilheira ação de Marcos Chaves, viu-se temporariamente interrompida (entre 18/10 a 19/11 de 2000).  Por apenas um mês, elas foram inscritas no fluxo da vida:  usaram maquiagem e adornos, chamaram o olhar do outro pela novidade.  Hoje, sobrevivem apenas nos fantasmas de luz, sombra e cor contidos na memória das fotografias.

Fernando Cocchiarale
Janeiro de 2001