Eu só vendo a vista (Ligia Canongia)

 

O trabalho de Marcos Chaves que se tornou mais notório no âmbito do uso da fotografia foi o eu só vendo a vista, de 1997. Trata-se da apropriação do Pão de Açúcar, ou melhor de um ícone da cidade do Rio de Janeiro, imagem com que nos defrontamos todos os dias e que sofre o desgaste dessa recorrência, tanto quanto a bandeira norte-americana em relação a seu país, aos olhos de Jasper Johns.  Mais do que tratar o Pão de Açúcar como readymade, o que Chaves se apropriou foi da imagem turística da paisagem, vendida aos montes como cartão  postal. A ponto desse postal fazer a “beleza da natureza” tornar-se “indiferente” para nós. Deslocar o cartão postal das bancas de jornal ou das agências de turismo para o campo da arte não significa porém re-qualificar o Belo natural. A idéia deve ser, antes, a de desviar a paisagem, a natureza, para o campo intelectual do pensamento que vai agir sobre ela, transformá-la. E aqui entra a inserção da frase “eu só vendo a vista”, com toda a sua ambigüidade semântica. O fato do artista ter retirado a crase da expressão “à vista” foi essencial para que essa ambigüidade se cumprisse. Desdobrou seu potencial significativo para várias leituras. Ali estão contidos os enunciados: “eu só, vendo a vista” (o sujeito solitário que vê uma vista); “eu só vendo a vista” (o sujeito que só vende a fotografia da vista, o cartão postal – ou o sujeito-artista que só vende a obra em suporte fotográfico com a vista retratada; ou ainda o sujeito que só vende os olhos) e, por último, “eu só vendo à vista” (o sujeito que não vende a prazo, ou o sujeito-artista que não aceita parcelamento do mercado).

Essa obra teve três versões. A primeira, que deu a Marcos Chaves o Prêmio de Viagem ao País do XVI Salão Nacional, foi realizada em vídeo e o “cartão postal” era vivo, embora o espectador distraído pudesse nem notar. A imagem parecia fixa, mas na verdade pulsava e notava-se que, à distância, no tecido urbano, um pequeno carro passava, por exemplo. Por cima dessa imagem quase parada, corria pela tela de projeção, como um letreiro luminoso, a frase-título, e sempre de tal forma que nunca partida ao meio ou faltando qualquer palavra. O estudo desse looping foi feito com precisão matemática para que se mantivesse a integridade do enunciado durante todo o seu correr sobre a paisagem.

A segunda versão, em gravura off set, deu ao trabalho o caráter de múltiplo, como os cartões postais, vendáveis e acessíveis, como os cartões postais, com pagamento à vista. Essa segunda versão dava estruturalmente à obra um prosseguimento natural, na prática, das próprias questões que apontava. Reconduzia o readymade à cadeia de sua circulação pública, a seu status quo original, mesmo que enxertado por uma proposição estranha. E aqui cabe lembrar as garrafas de Coca-cola de Cildo Meireles, obra dos anos 70, que também voltaram ao circuito de distribuição após interferência do artista.

A última versão, em processo digital, foi exibida em painéis eletrônicos de várias cidades do Brasil, atingindo, finalmente, a distribuição em massa, e contribuindo para fechar o circuito do próprio pensamento do trabalho. Creio não ser necessário aqui relembrar o discurso de Walter Benjamim a respeito da reprodutibilidade da obra de arte na era das técnicas modernas, e das implicações sobre a perda de sua aura enquanto objeto único, autêntico e original, pensamento este que esteve na base do ato duchampiano.

 

 

Extrato do texto “Chaves para leitura” de Ligia Canongia  para o livro sobre o artista editado pela FUNARTE em 2000